Por Ana Alakija
Recentemente revisitei o artigo do colega Luís Cláudio Cunha escrito para este Observatório da Imprensa contendo mais de duas centenas de palavras colhidas em artigos jornalísticos para referir ao governo daquele que chamamos de Presidente da República por respeito à Constituição. O artigo despertou a minha atenção principalmente como jornalista e pesquisadora da diáspora africana atenta ao uso de termos usados pela mídia quando associados especialmente a raça e etnia, e a sua conotação.
Como o próprio Cunha diz no artigo, tem havido necessidade [diária] de “escavar novos adjetivos para definir [a ] inqualificável obra de governo [do presidente].” Alguns desses termos disseminados ultimamente não somente pela grande mídia, mas também através das mídias sociais não somente por jornalistas, mas também por internautas formadores de opinião tem sido “zumbis” e “tupiniquins” para qualificar, ou melhor, “desqualificar” os apoiadores e seguidores do presidente, seus filhos políticos, seus asseclas e seu governo.
Dentre outras aberrações em plena pandemia do coronavírus, esses lídimos exemplares da bestialidade humana não têm seguido regras básicas de prevenção da Organização Mundial de Saúde: eles não usam máscaras, não respeitam distanciamento social, incentivam aglomerações e produzem manifestações, ultimamente contra o lockdown; espalham a ira, ameaçam, agridem e contribuem para a disseminação de fake news, cuja indústria tem sido publicamente denunciada como vinculada ao gabinete do ódio comandado pelos filhos do presidente. Como se isso fosse pouco, esses apoiadores aplaudem o desdém do presidente à morte de milhares de pessoas e sofrimento das famílias vítimas de COVID-19 ––recentemente dirigido aos suicidas desesperados com a pandemia. Eles suportam a politica genocida de seu governo oferecendo armas quando o povo quer vacina; os escândalos de corrupção denunciados no Supremo Tribunal Federal envolvendo seus filhos e seu governo; a ostentação de luxúria, como a compra de uma mansão de mais de 6 milhões de reais por um dos seus filhos, realização de churrascos festivos, passeios de barco, enquanto grande parte da população enfrenta a doença, a morte, o alto custo de vida, o desemprego e a miséria. Eles ainda postam as suas proezas nas mídias sociais como trunfos de uma caçada sanguinária que parece não ter fim.
Eu quero explicar porque “qualificar” esses imbecis, reacionários e negacionistas de “zumbis” e “tupiniquins” está na contramão da democracia. Para comentários sobre o uso do termo “tupiniquim” como unívoco dos adeptos das ideias e comportamentos insanos do presidente, a deixa fica para meu compatrício jornalista, filósofo e líder do movimento indígena brasileiro, Ailton Krenak, que tive a satisfação de conhecer pessoalmente em Palmares, durante o tombamento da Serra da Barriga pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1985. Diga-se, de passagem, que a Serra da Barriga, em Alagoas, que abrigou o maior, legendário e centenário povoado de refugiados dos engenhos onde eram escravizados, o Quilombo de Palmares, é hoje reconhecida como um patrimônio Cultural do Mercosul. Eu convido também o meu amigo e conterrâneo fundador e primeiro presidente da Associação Nacional de Ação Indígena, Ordep Serra, a entrar nessa discussão.
Para o termo “zumbi”, eu vou evocar inicialmente o “Pai dos Burros”–– essa é outra história muito interessante que deveria ser visitada. A primeira edição do Novo Dicionário Aurélio, publicada pela Nova Fonteira, em 1975, um dos mais senão o mais respeitado dicionário da língua portuguesa no Brasil, traz 5 definições de “zumbi”, além da etimologia da palavra: nzumbi, de origem quimbundo [Kimbundu, grupo etino-linguístico pertencente a um dos maiores grupos étnicos de Angola e presente também em 27 outros países da África Central] que o Aurélio traduz como “duende”. As definiçõe são: 1) O ultimo chefe do Quilombo dos Palmares; 2) fantasma que vaga pela noite, de acordo com a crença afro-brasileira; 3) individuo q só sai à noite; 4) designação dada à alma dos animais nos interiores do país brasileiro; 5) lugar deserto do sertão.
Como contraponto, eu escolhi as definições dadas pela Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana publicada pela Selo Negro 2011, na edição capa dura que me foi ofertada pelo seu autor, o caríssimo escritor dicionarista vencedor, dentre outros prêmios, do Jabuti paradidático 2009, Nei Lopes. São três entradas para o termo “zumbi”, uma das quais específica para Zumbi dos Palmares, “o maior líder da confederação Quilombo dos Palmares” e “protomártir da libertação dos negros brasileiros”. As outras entradas referem à origem quimbundo do termo nzumbi, significando o imaginário popular sobre espíritos de pessoas ou animais vagantes, e lugar ermo onde a caça aparece. Lopes acrescenta que o nome “zumbi” também designa uma localidade na ilha do Governador, no Rio de Janeiro.
Não se sabe ao certo a origem do nome dado a Zumbi (dos Palmares). A história oral alude que Zumbi tinha esse nome em homenagem ao deus africano da coragem, valentia e imortal chamado Nzambi. Dizem q ele, Zumbi dos Palmares, não dormia ou dormia muito pouco, na vigília do quilombo. E que, algumas vezes, ferido e dado como morto em batalhas contra as guardas oficiais e milícias que por varias vezes tentaram destruir o quilombo que resistiu a ofensivas durante quase cem anos, se curava espontaneamente. E e a luta de resistência sob seu comando começava de novo.
Parece que a alcunha de “zumbis” designada para os amorfos bolsonaristas surgiu nas redes sociais relacionado com os mortos-vivos da série de televisão norte-americana de horror The Walking Dead, lançada nos Estados Unidos em 2010. A série é co-criada e baseada no livro de quadrinhos de Robert Kirkman, que criou os Marvel Zombies, como criaturas mortas que comem humanos vivos. Depois disso Hollywood passou a explorar exaustivamente o tema, a exemplo da Disney que lançou o filme de grande sucesso Zombies (2018).
Na verdade, o uso do termo “zumbi” pela literatura e o cinema nos Estados Unidos é tão antigo quanto a ideia que se criou de zombies como mortos-vivos canibais, inspirada na distorção da cultura do Caribe, especialmente do Haiti. O pensamento vem da interpretação da obra do jornalista norte-americano William Seabrook, da chamada geração perdida. Seabrook era um ocultista, explorador, viajante, fascinado pelo satanismo e revelou, ser ele mesmo, literalmente um canibal. Foi através de seu famoso livro, A Ilha Mágica (“The Magic Island”, 1929), que a T V ABC criou a famosa série “A ilha da fantasia”, nos anos 70. A famosa cadeia norte-americana de TV e filmes para a televisão se inspirou no que Seabrook relatou sobre as suas experiências de viagem pelo Haiti, disseminando uma visão supersticiosa da ilha. Seabrook reporta ter visitado comunidades que nunca serviram de plantações para enriquecimento de senhores de engenho europeus, e que eram conduzidas por reis e rainhas de cor de pele negra e branca que praticavam a afro-indigenista religião Voodoo.
Homens mortos trabalhando em antigas plantações de canaviais que retornam à vida para vingar o seu próprio sofrimento e de seus antepassados como escravos são então retratados através do estereótipo de mortos-vivos no primeiro filme sobre “zumbis” baseado no livro de Seabrook: “White Zombie,” 1932, um longa sobre o Vodu Haitiano. O filme inaugura o gênero de horror no cinema como filme independente no cinema falado. O período coincidiu com a saída dos estadunidenses que ocuparam o Haiti nas primeiras décadas do século XX para proteger seus interesses de domínio naquela região. As Indias Ocidentais, como o Caribe é conhecido, forneceram por muito tempo mão-de-obra escrava para as plantações do sul dos Estados Unidos. Assim as rebeliões escravas haitianas empreendidas por Africanos importados como mão de obra gratuita e as populações nativas que levaram a ilha de Saint-Dominique – como o Haiti era chamado– à independência entre o final do século XVIII e o inicio do século XIX, tornando-se a primeira e praticamente a única república negra independente na América, passou a figurar de forma distorcida na mitologia norte-americana sobre a região.
Há vários autores do Caribe que desmitificam esses estereótipos de “zombies” que a América imperialista e colonialista produziu tomando emprestado o nome de um deus da África Central para produzir esses horrores de mortos-vivos do mau baseada em leitura de supremacia branca da cultura Vodu do Haiti. Para quem tiver interesse nesse conhecimento, recomendo ler Se Eu Pudesse Escrever Isso Com Fogo (If I Could Write This in Fire: An Anthology of Literature from the Caribbean) uma antologia organizada por Pamela Maria Smorkaloff (New Press, 1996). Especialmente sugiro o conto “Salários Pagos” (“Wage Paid”), de James Carnegie, uma ficção das rebeliões negras organizadas pelas sociedades marrons ( “The Maroon Societies”) – comunidades franco-hispânica-anglicanas caribenhas de fugitivos, similares aos quilombos brasileiros; e o extrato de “Dos Jacobinos Negros” (“From the Black Jacobins”), de CLR James, clamando pela unidade das vozes da África e do Caribe nas diásporas africanas para produzir efeitos como o da Revolução Haitiana, tendo à frente seu Black Jacobins ou Zumbi, Toussaint Louverture.
Na historiografia brasileira, a trajetória heroica de Zumbi (dos Palmares) foi difícil de ser assimilada oficialmente. Ela foi contada pela primeira vez por Édison Carneiro em O Quilombo dos Palmares, 1630-1695 (Brasiliense, 1947). Na verdade, a primeira edição da obra teve recusada a sua publicação pelo Estado Novo e foi lançada no México, em espanhol, Guerras de los Palmares (Tierra Firme, 1946). Ambos os trabalhos foram reinterpretados por Clóvis Moura em Os Quilombos na Dinâmica Social do Brasil (EdUFAL 2001 [1983]).
A educação do povo brasileiro para assuntos como esses também falhou. Quando as ações afirmativas foram implantadas na área da educação no Brasil, em 2008, pelo governo de Luís Inácio Lula da Silva ––120 anos depois da abolição do regime da escravidão––com a obrigatoriedade de ensino de matérias como História da África e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, não havia livros didáticos sobre esse assunto. Joel Rufino dos Santos foi um dos primeiros historiadores que se dedicaram à narrativa da trajetória de Zumbi para escolares (Zumbi, Global 2015). Rufino já havia se dedicado antes a revisar a Historia do Brasil escrita do ponto de vista dos oprimidos (História Nova do Brasil 4, Brasiliense 1964), que foi abortada pela ditadura militar. Até hoje há uma grande dificuldade em termos de material didático e formação de professores para atender ao que regem as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 que instituiram o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena na educação nacional.
A mídia brasileira contribuiu para a disseminação dessas distorções dos símbolos e valores da cultura de matriz africana. A teoria da invisibilidade e estereotipagem do negro e sua história na mídia brasileira teve Muniz Sodré como um dos pioneiros, em seu livro Claros e Escuros: Identidade, Povo e Mídia no Brasil (Vozes, 1999). Sodré define a mídia como “um instrumento de direcionamento ou de criação de subjetividades no homem” e defende que “compreender o universo comunicacional, em sua feição midiática/tecnológica, segundo uma diversidade de argumentos significa nos compreendermos como sociedade, percebermo-nos como sujeitos e cidadãos (…)e pensarmo-nos como público e coletividade” (em RB&RB, Racismo na Mídia, ABPN, 2012).
Outros livros importantes nessa linha são as coletâneas de Flávio Carrança e Rosana Borges Espelho Infiel: O Negro no Jornalismo Brasileiro (Sindicato de Jornalistas do Estado de São Paulo, 2004) e de Roberto e Rosana Borges, Racismo na Mídia (ABPN, 2012) da qual eu também contribui; e Fernando Conceição, Mídia e etnicidades no Brasil e nos Estados Unidos (Livro Pronto, 2005). Muito útil para a compreensão de que a mídia produz e reproduz estereótipos e a responsabilidade do formador de opinião que lida com ela é também o Guia de Gênero, Raça e Etnia (ONU-Mulheres, Federação Nacional dos Jornalistas, 2011), organizado pela jornalista Angelica Basthi com o apoio das Comissões de Jornalistas pela Igualdade Racial na Mídia de sindicatos de jornalistas de vários estados. Então, a mídia social, inclusive por parte daquela e daqueles que se dizem anti-racistas, produzindo e reproduzindo “zumbi” como “mortos-vivos do mau” é apenas um reflexo da sociedade que não teve a informação e a educação necessária.
Por último, eu quero dizer que a lição de Zumbi não parece tão difícil de ser compreendida. Da mesma forma que a sociedade civilizada e democrática compreende que é bastante ofensivo chamar pessoas LGBTQ+ de termos como b*, v* e s*, é igualmente insultuoso para o povo negro e sua memória coletiva chamar de “zumbi”, esses débeis mentais de cérebros lavados que agem por impulso para o perverso em histeria coletiva. A história mostra que “zumbi” é um termo positivo, aludido a heroísmo e resistência. “Bolsonarista” é um termo negativo associado ao atraso e alienação. Chamar esses imbecis, reacionários, psicopatas, neo-kukluxklanianos de “zumbis” e “tupiniquins” está na contramão do discurso democrático. EU, mulher negra, não me identifico com essas bestas humanas. Eu me identifico com os “zumbis”. Sou morta-viva guerreira no combate, arqueira anti-racista e anti-fascista da democracia.
Ana Alakija é Jornalista com Mestrado em História pela Salem State University (EUA)