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O psicanalista, o presidente e o armário

Publicado em: 01/11/2019

Por: RAPHAEL SILVA FAGUNDES

Leia a crônica de Raphael Fagundes, colunista da Fórum, que trata sobre a história de um psicanalista que passou a analisar uma suposta homossexualidade enrustida de um certo presidente.

Era um dia cinzento e frio. O psicanalista Leonardo Dias estava se retirando do país com sua família por causa das ameaças que recebia de uma milícia virtual que trabalhava para o presidente da República.

O motivo para tal desfecho indesejado foi a análise que o professor fizera do presidente que colocava em xeque a posição sexual do governante na hierarquia dos gêneros, tão defendida por ele e seus apoiadores.

Dias coletou os discursos do homem obtuso e agressivo que havia assumido o cargo de presidente para analisá-los através do conhecimento psicanalítico produzido desde Freud. Detectou o uso frequente de conotações homossexuais disfarçadas de retórica política. Por exemplo, em relação ao presidente da Câmara dos deputados, o presidente havia dito: “Eu falei que o nosso relacionamento começou com algum atrito, igual àquele grande amor que nasce de um acidente de trânsito. Você desce do carro, fala para a dona Maria: ‘A senhora não sabe dirigir’. E ela xinga: ‘Machista’. Conhecem ali, e vão ser felizes para sempre. Eu estou quase me casando…”

Ao sair de um almoço com o ministro do TCU, em 27 de abril, o líder da democracia brasileira voltou a falar do seu “namoro” com o presidente da Câmara, também presente na reunião: “Foi uma conversa muito boa, tranquila… Estou namorando o x. Conversa maravilhosa com ele”. Dias buscava não citar nomes, exatamente como os psicanalistas fazem ao relatar os atendimentos com seus pacientes.

Em outra declaração, o presidente falou sobre sua relação conjugal com o ministro da economia: “Peço desculpas por frustrar a tentativa de parte da mídia de criar um virtual atrito entre eu e y. Nosso casamento segue mais forte que nunca kkkkk”.

Seu ex-secretário geral disse uma vez: “Hoje posso dizer que sou, de forma hétero, apaixonado [pelo presidente]”. Esta relação era inclusive reconhecida por outras pessoas. Uma deputada federal comentou, no episódio da desoneração do ex-secretário: “A relação ali ficou aquela coisa do casamento que está acabando, uma relação insustentável. Foi uma paixão louca lá atrás. Os dois só andavam juntos, do café da manhã ao jantar, e de repente a relação desgastou e veio o divórcio”.

O agitador fascista
Em um encontro com o presidente dos Estados Unidos, o representante brasileiro não titubeou em dizer “I love you”, em uma cena que para a esquerda pareceu uma mera submissão ao imperialismo norte-americano.

Mas a gota d’água, a declaração que levou o famoso psicanalista a defender sua tese foi quando, ao se reunir com o príncipe da Arábia Saudita, o líder do maior país da América Latina soltou: “Todo mundo gostaria de passar uma tarde com um príncipe. Especialmente vocês mulheres, né? Vou ter essa oportunidade hoje […]Tenho uma certa afinidade com o príncipe. Em especial depois do encontro…”

Em um programa de entrevista, o psicanalista apresentou toda a sua base teórica para compreender o que se passava com o presidente. Citava Freud: “em geral, o homem oscila durante toda a vida entre sentimentos heterossexuais e homossexuais e a privação ou o desencanto de um dos tais setores o leva ao outro”.

“O homem é um animal de indubitável disposição bissexual”, continuava explicando sua conclusão por meio dos ensinamentos freudianos.

– Uma vez, uma paciente de Freud pediu a ele que fizesse algo para transformar a homossexualidade do filho em heterossexualidade. O grande mestre disse que isso não daria certo e, em seguida, explicou a finalidade da psicanálise: “Se ele é infeliz, neurótico, dividido por seus conflitos, inibido na vida social, a psicanálise pode lhe levar a harmonia, a paz de espírito, uma plena atividade ainda que se mantenha homossexual, ou que altere esse comportamento”, disse o psicanalista aos jornalistas que o entrevistavam.

Um dos repórteres fez a seguinte pergunta:

– Essa questão pode influenciar no comportamento do presidente?

– Sim – respondeu o psicanalista -. Não por ser homossexual, evidentemente. Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci, eram homossexuais e deixaram um legado inestimável para a humanidade. Mas enquanto o presidente não se tratar, isso influenciará diretamente em seu comportamento, no discurso que adota etc.. Talvez por isso ele seja tão agressivo, produtor de uma fala confusa. Ele precisa estar bem consigo mesmo. O psicanalista Otto Finichel dizia que “muita gente combate o homossexualismo na sociedade em vez de sentir-se culpado pelo seu próprio homossexualismo inconsciente”. Portanto, ao ver a possibilidade de um indivíduo revelar sua condição homossexual e ser feliz com isso, o homem que a reprime dentro de si, acaba agredindo, despejando por meio da homofobia, um determinado ódio. É como se ele pensasse assim: “Se eu não posso me revelar, por causa de toda a pressão social e cultural que existe, ninguém pode”.

– Então o senhor afirma que o presidente tem uma homossexualidade enrustida e não revela por causa do que representa, no caso, o discurso conservador que o levou ao cargo?

– De certa forma sim. Não estou acusando o presidente de nada, até porque a homossexualidade não é um problema. A questão é não estar bem consigo mesmo, como Freud explicou no caso que destaquei antes.

Na mesma noite, após a entrevista, Leonardo Dias chegou em casa e checou seus e-mails e redes sociais. Diversas ameaças foram enviadas a ele. Os seguidores do presidente acharam que tudo aquilo era um grande absurdo e um desrespeito para com a maior figura da democracia do país.

No dia seguinte, o psicanalista foi para o seu consultório, como de costume, e encontrou sobre o divã uma cabeça de porco e a janela quebrada. Ele deu parte na delegacia, mas nada foi feito.

Uma notícia no jornal da tarde mostrava fotos do presidente de mãos dadas com o ministro da segurança saindo de um restaurante. Curioso que os repórteres nada comentaram em relação ao fato, apenas quanto custou o jantar, 120 mil reais. “Só eu que consigo ver o que é tão óbvio?”, pensava o doutor.

No outro dia, o presidente fez um pronunciamento radical acusando a homossexualidade como uma doença e um desrespeito à família. Após aprovar uma medida que retirava dinheiro do SUS para subsidiar planos de saúde, acusou o movimento LGBTQI de esquerdista, além de reafirmar a condenação de Deus sobre a questão. Ele destilava o seu ódio, parecia uma resposta às declarações feitas pelo professor há dois dias atrás.

Leonardo Dias voltou para casa no fim do dia e a encontrou vandalizada. Pichações o chamavam de inimigo da pátria e o juravam de morte, caso não negasse tudo que havia dito. Foi nesse instante que o psicanalista decidiu exilar-se com sua família.

Um ano depois, após ter se tratado, o presidente revelou sua sexualidade para o mundo. Enfrentou os que a reprimiam e teve a coragem de denunciar diversos grupos homofóbicos que o apoiavam, convidando-os a “saírem do armário” assim como o fez.

Apesar de uma série de protestos conservadores liderados pelas igrejas evangélicas, o presidente conseguiu se manter no cargo adotando agora uma nova política. Um discurso mais ameno e harmonioso passou a ser defendido pelo homem que outrora esbravejava insanidades. O acolhimento às minorias passou a fazer parte de sua agenda política. Não se falou mais em tortura e se abriu ao diálogo, revogando muitas leis truculentas em relação aos trabalhadores e as classes mais pobres da sociedade.

O psicanalista via tudo aquilo do seu exílio e disse em um jantar com sua família em Milão: “antes tarde do que nunca”. 

Raphael Silva Fagundes
Doutor em História Política na UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.

Publicado originalmente na Revista Fórum

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