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Voo da Consciência Lúcida Atormentada

Publicado em: 21/11/2023

CÉSAR FONSECA – “O VOO DA ALMA”, de Jorge Oliveira, jornalista, escritor e cineasta, é construção literária abstrata em cima da realidade concreta vivenciada pelo autor que a descreve como se fosse a sua própria existência, com competência e emoção de alguém que tem a experiência da vida circulando no seu sangue de nordestino que se universalizou.

É um fôlego largo que prende a gente do início ao fim em seus desdobramentos encadeados e interconectados pela história do Brasil em um período dos mais excitantes.

Nele estamos inseridos num cenário no qual nos situamos como realidade periférica do mundo capitalista em que a força do dinheiro determina o destino de cada um no meio do coletivo histórico contraditório que nos choca individualmente e igualmente nos encanta e inquieta.

Percebemos, no correr da leitura, que desperta inquietação e temor, estar inseridos, de corpo e alma, no jogo da realidade e ficção, ambas se interagindo, freneticamente, jogando-nos no tabuleiro da vida em permanente mudança, sendo esta a única certeza possível de ser constatada e aferida.

Miséria e beleza humana, em “O voo da alma”, encontram-se em doses equilibradas, no ambiente da pobreza e da opulência, em variáveis relativas; revelam suas faces de violência em escalas proporcionais aos estágios da vida em que se encontra Assibério, o personagem central da novela.

Sua caminhada existencial de nordestino nasce da escassez expressa em diferentes circunstâncias durante as quais apurou sua inteligência genial, natural, sempre em evolução racional e real – “O real é racional e o racional é real” (Hegel) –, até alcançar os píncaros da glória.

No entanto, dramaticamente, ela é destruída pela consciência do engano de pensar que está a serviço do bem, quando, na verdade, encontra-se manipulado a produzir a realidade cruel sob domínio do mal.

Eis a crueza de uma sociedade em que a vida em perigo está permanentemente manipulada pelos desígnios construídos pela manipulação do capitalismo atômico nas mãos dos poderosos a serviço da inescrupulosidade.

DE ALAGOAS PARA O MUNDO

Assis e Sinhá, no lugarejo próximo de Estrela, interior de Alagoas, geram Assibério/Wallace em meio a uma penca de filhos, vivendo na miséria do sertão nordestino, como tantos iguais a eles por esse Brasil sob tempo de Getúlio Vargas, que construirá o País industrial e consciente dos direitos sociais como conquistas fulgurantes da cidadania e da soberania nacional.

Tal conquista essencial é que impulsiona a mobilização social pelos tempos afora, na tarefa da integração nacional.

A conjuntura social, econômica e política dessa realidade se forma pela base de uma sociedade patriarcal violenta, cujas contradições, invariavelmente, eternizam a luta de classe entre capital e trabalho, embora os personagens não se dão conta dela ao longo de suas existências alienadas.

Brilhante, Assibério encanta, pela inteligência, simplicidade, humildade e humanidade, almas solidárias que irão se empenhar, com o coração aberto, pelo seu sucesso vindouro.

Marlene, professora caridosa que toma conta de filhos de mulheres jovens engravidadas pelos coronéis donos da política nos cafundós dos brasis nordestinos, é a primeira a captar o talento do menino que o pai não deixava ir à escola.

Queria-o para ajudá-lo a criar cabras, galinhas, porcos, vacas, que existirão enquanto a seca miserável não dizimar tudo, implacavelmente.

Pelas mãos de Marlene, a humanidade de Assibério irá aflorar interminavelmente, ao longo do roteiro trepidante e cheio de imprevistos e colapsos que traçam a existência dele, pela fértil imaginação de Jorge Oliveira.

O garoto sairá das Alagoas para ser premiado na capital da República em concurso de redação, classificado com louvor pelos julgadores de um talento incomum, final feliz que jamais acontecerá, lamentavelmente.

Na viagem para a capital, cidade maravilhosa, financiada pela prefeitura de Estrela, comandada por político populista, as surpresas, tristezas, violências, tragédias e sortes eventuais, seguidas de riscos e suspenses arrepiantes, irão acompanhar o personagem até o momento em que será premiado por quem reconhece sua genialidade de dispor de um QI excepcional, que o levará à glória.

PAIXÃO PELA CIÊNCIA

Apaixonado, desde criança, pela física e pela química, matérias que, graças a sua intensa curiosidade, o levam ao brilho e reconhecimento dos renomados mestres, nacionais e internacionais, Assibério vai acontecer e se deslumbrar pela força do próprio conhecimento e vontade de aprender, em escaladas sem fim.

Pela mão de uma socialite, patroa de Esmeralda, mulher de policial integrante do Esquadrão da Morte, que o leva para sua casa, recolhido na marginalidade de um puteiro, depois de trágica experiência com caminhoneiro transportador de cargas, na rodovia Rio-Bahia, Assibério vai se transformar em Wallace.

Viúva de banqueiro/deputado rico e poderoso, ganhador de fortunas com informações privilegiadas colhidas nos corredores do poder, Antonieta adotará Wallace e o encaminhará como filho adotivo pelos estreitos caminhos do sucesso.

O talentoso rapaz galgou rapidamente as escadarias da fama, graças a uma auto-consciência lúcida e atormentada, dona de si, que encantará professores, colegas e um amor impossível que não se realizará, para, finalmente, chegar, por mérito, na Nova York, em Columbia.

Seu destino brilhante desperta o governo americano para utilizá-lo, com exclusividade, nas experiências conduzidas pela CIA, nos Estados Unidos e nas periferias colonizadas pelo Império na expansão armamentista.

Aqui se verifica a face do imperialismo que estabelece as regras do mundo e que enganam as almas bem-intencionadas como a de Wallace, crente em estar a serviço da humanidade, quando, desgraçadamente, se vê a serviço do seu oposto, da desumanidade.

A morte, por desgosto, é um passo inevitável.

Jorge nos leva a uma viagem excitante, cujo substrato, essencial, é a realidade brasileira, social, econômica e politicamente excludente, como periferia capitalista colonizada.

Ela funciona como filtro ou moedor de carne, a expor construção e desconstrução de essências e aparências capazes de permitir avanços e progressos ininterruptos em doses desiguais de ofertas de oportunidades em uma sociedade ainda martirizada pelo analfabetismo nu e cru, dominada pelo capitalismo financeiro oligopolizado, colhedor de talentos para servir a seus interesses.

Autêntica novela latino-americana em sua universalidade multicolorida e trágica.

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