A intervenção em qualquer ente federado é medida severa e incomparável à instauração de uma simples investigação contra um agente público. Não é por acaso que o artigo 34 da Constituição Federal dispõe que a intervenção somente é possível em situações especialíssimas. Todavia, para o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, não é essa a lógica que prevalece. Ele fez de tudo para que o Supremo Tribunal Federal (STF) determinasse intervenção no Distrito Federal; porém, agora, cerca-se de extrema cautela para tomar uma decisão simples: requerer junto ao STF a instauração de inquérito para investigar o ministro Palocci.
Fiquei perplexo quando vi o dr. Gurgel alegar na imprensa que o fato de o ministro Palocci ter adquirido bem de valor superior a várias vezes a sua última declaração patrimonial, a princípio, estaria limitado a questões éticas, sem necessidade de intervenção do Ministério Público. Ora, dispõe o artigo 9°, inciso VII da Lei 8.429/1992 que constitui improbidade administrativa: “adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público;” Por sua vez, o artigo 22 da mesma Lei, reza que cabe ao Ministério Público agir de ofício ou mediante provocação para apurar condutas que, em tese, configurem improbidade administrativa.
A biografia do ministro Palocci (encontra-se no Portal da Câmara dos Deputados) registra o exercício do mandato de deputado federal de 1° de janeiro de 2007 até 1° de janeiro de 2011, quando se licenciou para ocupar o cargo de ministro. A aquisição do bem (imóvel de R$ 6,6 milhões) ocorreu na época em que exercia o mandato de deputado e, embora a biografia seja detalhada, registra atividades profissionais exercidas como a de professor e de médico, sequer menciona a atividade que o tornou milionário: consultoria. Daí, não há dúvida de que o fato noticiado enquadra-se na improbidade acima transcrita, até porque a lei estabelece presunção juris tantum (presunção relativa). Isto quer dizer que só o fato de o agente público adquirir bem cujo valor seja desproporcional à evolução patrimonial ou à renda configura, em tese, a mencionada improbidade, cabendo a ele o ônus da prova (prova em contrário), isto é, provar que a aquisição ocorreu por meios lícitos.
Essa comprovação tem que ser real e não apenas formal. Assim, não basta somente alegar que prestou consultoria e que os ganhos foram todos declarados. Isso é comprovação formal. É necessário verificar se realmente os proventos são decorrentes de atividade lícita, ou seja, se tal consultoria não se prestou para atividades ilícitas como tráfico de influência ou outras formas de interferências na gestão pública. Assim, para o trabalho apuratório, é necessário investigar os supostos contratos feitos com cada empresa, bem como os benefícios obtidos por elas e isso não se faz com “explicações” escritas ou verbais do agente público. É necessária a quebra do sigilo bancário e fiscal de todos os envolvidos para que sejam apuradas as relações com o setor público, bem como as relações privadas que dependam de autorização do setor público. Para isso, é necessária a instauração de inquérito policial, no bojo do qual serão pleiteadas as medidas judiciais junto ao STF. É assim que deve ser feita a investigação, caso contrário nunca se saberá se a atividade foi ou não lícita.
Ademais, além da improbidade administrativa, mister se faz apurar eventual ocorrência de delitos, entre eles, o da Lei 9.613/1998, que pune o crime de “lavagem de dinheiro”. É preciso verificar se o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) cumpriu o seu papel legal, ou seja, se foi informado das movimentações financeiras da empresa de Palocci e se tomou as providências previstas no artigo 15, da Lei em epígrafe. E não se diga que é normal uma empresa, constituída em 2006 por dois sócios, faturar vários milhões de reais e fechar quatro anos depois, tendo o seu maior faturamento justamente próximo ao fechamento. Acreditar na legalidade de um empreendimento nessa condição é o mesmo que crer na existência de Papai Noel.
De mais a mais, parece inverossímil que o ministro Palocci, cuja formação é médica, torne-se consultor econômico repentinamente, após deixar o cargo de Ministro da Fazenda, mormente porque sua permanência na função foi bastante tumultuada com várias acusações, tendo sido obrigado a deixá-la prematuramente. Não parece razoável que ele tenha adquirido tanta experiência e elevado prestígio em área fora da sua formação acadêmica, a ponto de atrair o interesse de várias empresas para o seu trabalho de consultor, pois, se não bastassem as acusações que lhe fizeram deixar o cargo, sua gestão na Pasta da Fazenda limitou-se a dar continuidade ao plano econômico (Plano Real) de autoria alheia, o que também vem fazendo o seu sucessor. Destarte, Palocci não inovou em nada para justificar tanto interesse no seu trabalho de consultoria.
Com efeito, reclama a prudência, até porque em tais situações prevalece o princípio do in dubio pro societate (na dúvida, apura-se) que o fato seja apurado, mormente pelo fato de o Brasil ser signatário de convenções internacionais de combate à corrupção, que consideram o enriquecimento ilícito como nocivo ao regime democrático. Portanto, com a devida venia, é injustificável o comportamento do Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, que se enche de cautelas e recalcitra em fazer o óbvio que a situação exige.
Não escreveria este artigo se a atitude do procurador Gurgel, neste caso, fosse única. Ela está inserida em um contexto que vem desde a gestão do primeiro Procurador-Geral da República nomeado no Governo Lula. Quando a questão envolve interesse do Governo, o estilo de trabalho é outro. Por exemplo, alguém se lembra do empenho dele (Gurgel), quando o investigado era José Arruda, ex-governador do DF? E da filha do Roriz (ex-governador do DF), imediatamente ele acionou o STF para instaurar inquérito. Agora que o caso é do interesse do Planalto, ele fica em cima do muro, arrumando desculpas para não fazer o que já deveria ter feito. Representei, há mais de um mês, para que seja promovida a responsabilidade criminal do ex-presidente Lula e até hoje não tive nenhuma resposta.
Escrevi o livro De Faxineiro a Procurador da República (edição esgotada, informações no site www.manoelpastana.com.br) para levar ao conhecimento da sociedade os absurdos praticados dentro do MPF e nos bastidores do poder. Enfatizo que, além de publicar o livro, fiz várias representações no sentido de que fossem apuradas as ilegalidades.
Entre outras práticas reprováveis, que incluíram perseguições e favorecimento a procuradores, conforme atuassem ou não contra determinada categoria de corruptos, não foram tomadas providências legais, quando as situações exigiam para combater efetivamente a corrupção. Por exemplo, caso o ex-Procurador-Geral da República Antonio Fernando tivesse feito o que deveria, hoje o ex-Presidente Lula estaria dando palestras em penitenciárias. Como ele não fez, os integrantes da “sofisticada organização criminosa” continuaram com acesso livre à chave do cofre e a corrupção virou epidemia.
Eu sei QUANDO e COMO isso começou, mas não sei QUANDO e COMO vai terminar. Receio que seja da pior forma possível. Que a sociedade, cansada de tanto trabalhar para pagar impostos que são sugados pelo ralo da corrupção (vide meu artigo: A multiplicação dos bens), reaja violentamente. Espero que não haja violência. Que a sociedade reaja sim, mas dentro da lei como, por exemplo, no passado, fizeram os caras-pintadas que foram às ruas contra a corrupção (hoje a corrupção está bem maior do que naquela época).
Manoel Pastana : Procurador da República e autor do livro De Faxineiro a Procurador da República. www.manoelpastana.com.br
Fonte: Congresso em Foco