Por Cynara Menezes – Com aquele rosto redondo perfeitamente esculpido para os óculos igualmente esféricos e os ternos que parecem comprados em magazines populares, Carlos Augusto Ramos poderia facilmente se passar por um pacato corretor de seguros ou dono de uma loja de colchões. Mas não se engane. Em menos de duas semanas, os crimes de Ramos, mais conhecido como Carlinhos Cachoeira, listados pela CPI são de assustar: sequestro, cárcere privado, prostituição, jogatina, sonegação fiscal, evasão de divisas, tráfico de influência, corrupção ativa, formação de quadrilha, suborno. Só falta assassinato.
Em meio a disputas políticas e pressões de todo tipo, é esse amplo universo de criminalidade que os parlamentares investigarão nos próximos meses. Se forem eficientes, ao contrário de seus pares da CPI dos Bingos de 2005, que ignoraram o personagem, embora ele fosse um dos alvos da comissão, uma história exemplar dos tentáculos do crime organizado no Brasil será revelada em toda a sua plenitude e extensão.
“Tudo indica que o esquema de Cachoeira era muito maior do que imaginávamos”, afirma o senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), integrante da CPI. “Temos indícios de que ele cometeu diferentes crimes. Vamos pedir inclusive a ajuda da Interpol para investigar suas empresas no exterior”.
Ao menos duas das 59 empresas ligadas a Cachoeira tinham sedes em outros países: a Souza Ramos Corporation ficava num paraíso fiscal, a ilha de Curaçao, no Caribe. Já a sócia majoritária da BET Capital, que repassava milhões ao contraventor, justificados como “empréstimos” à Receita Federal, estava registrada na Coreia do Norte com o nome de BET Company. O esquema indica uma espécie de lavanderia internacional. Suspeita-se que os recursos da organização criminosa eram encaminhados para a sócia estrangeira. A Interpol poderá mapear os caminhos do dinheiro fora do País e esclarecer se existem contas bancárias em paraísos fiscais relacionadas ao grupo.
Outro rumo da investigação será a ligação de Cachoeira com a exploração da prostituição. Existem indícios de que as casas de jogos ilegais pertencentes ao bicheiro na cidade de Valparaíso, no entorno de Brasília, e nos municípios mineiros de Paracatu, Uberlândia, Uberaba e Araxá, também exploravam mulheres. O mais grave: há suspeitas de que algumas dessas mulheres fossem viciadas nas máquinas de caça-níqueis que, para continuar com acesso aos jogos e pagar suas dívidas, acabavam se prostituindo, muitas vezes com funcionários da casa ou outros clientes.
Os relatos de que as “amizades” de Cachoeira envolviam farras com prostitutas não são novos. Todos os que conheceram o bicheiro de perto costumam descrever sua “simpatia” e contar das festanças com mulheres incluídas. Em depoimento à CPI na quinta-feira 10, o delegado da PF Matheus Mella Rodrigues, titular da Operação Monte Carlo, declarou que o suplente de senador Ataídes Oliveira (PSDB-TO), assíduo interlocutor de Cachoeira, revela em uma das ligações interceptadas com autorização da Justiça estar no Hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, com 10 homens e 30 mulheres. Na quinta-feira 17, o site Congresso em Foco informou que o bicheiro pagou o jantar e contratou uma garota de programa para o tucano Eduardo Siqueira Campos, filho do governador de Tocantins.
A suspeita da PF é de que a intermediação de prostitutas era mais do que um simples “agrado” a amigos. Seriam tentativas de suborno. No caso do Tocantins, a Delta Construção, ligada a Cachoeira, teria interesse em fechar contratos com o governo, e Siqueira Campos filho era então secretário de Planejamento do estado. Segundo o relatório da PF, o jantar de Eduardo, ex-deputado e ex-senador, com a garota de programa aconteceu em 19 de maio de 2011, em Goiânia. A transcrição do grampo telefônico mostra o próprio Cachoeira a acertar com a prostituta para atender “quem realmente governa” no Tocantins. Siqueira Campos negou ao portal ser responsável pelos contratos da Delta com o governo estadual.
Na quarta-feira 9, o também delegado da PF Raul Alexandre Souza, titular da Operação Vegas, havia relatado à CPI uma “ampla sorte de crimes de natureza grave” cometidos pelo grupo de Cachoeira. Segundo o federal, em determinado momento chegou a temer pela integridade física de um dos membros da quadrilha. Em abril de 2009, narrou o delegado, um funcionário “foi sequestrado e mantido em cárcere privado” pelo fato de Cachoeira desconfiar que o assecla estivesse envolvido no roubo de dinheiro apurado nas máquinas caça-níqueis. Os autores do sequestro teriam sido Jairo Martins e Idalberto Martins de Araújo, o Dada, os arapongas que aparecem nas escutas como fontes constantes do jornalista Policarpo Jr., diretor da sucursal de Brasília da revista Veja.
“Dadá e Jairo abordam um funcionário e o Cachoeira manda dar uma prensa, dar um pescoção nele. A gente temeu muito pela vida dele”, contou o delegado. Segundo Souza, o funcionário foi solto graças à interferência de uma pessoa próxima ao bicheiro. Outro fator que impressionou o policial foi a influência do contraventor nos poderes de Goiás. Em março de 2009, após o assalto à residência de um gerente, Cachoeira fez diversos contatos com a Polícia Civil para pedir pessoalmente que as investigações sobre o caso fossem agilizadas.
Pesa ainda contra o contraventor a suspeita de ter montado uma rede de empresas “fantasmas” para receber por obras que nunca seriam entregues. Prefeituras do interior de Minas Gerais, Ceará e São Paulo são acusadas de fechar contratos com a Brava Construções e Terraplanagem e a Emicom Construções e Terraplanagem, registradas em nome de laranjas, para executar obras de programas habitacionais financiados pela Caixa Econômica Federal. Alguns dos contratos estão sob investigação do Ministério Público Federal. Os procuradores desconfiam que as empreiteiras só existam no papel.
Integrantes da CPI disseram que as investigações da PF comprovam repasses da Delta para a Brava e outras duas companhias que seriam laranjas de Cachoeira, as construtoras de fachada Alberto Pantoja e JR. As empresas seriam utilizadas para distribuir propinas e lavar o dinheiro proveniente das casas clandestinas de jogo. Só para a Pantoja houve um repasse da Delta no valor de 23 milhões de reais. Outros 7,5 milhões foram repassados para o contador de Cachoeira, Geovane Pereira da Silva, que está foragido. Para a Brava, foram 13 milhões de reais.
Com as revelações, causou protestos dos integrantes da oposição e até da base aliada na CPI a decisão do relator Odair Cunha (PT) de limitar o pedido de quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico às filiais da empreiteira Delta no Centro-Oeste, e não em todo o País. O presidente afastado da empresa, Fernando Cavendish, não foi convocado a depor. Para Cunha, os indícios de ligação da construtora com Cachoeira até o momento resumem-se a Cláudio Abreu, ex-diretor da empreiteira no Centro-Oeste. “Não permitirei a perda de foco.” O relator não descarta a possibilidade de se analisar, “em outro momento”, a convocação de Cavendish e dos governadores Marconi Perillo (Goiás), Agnelo Queiroz (Distrito Federal) e Sérgio Cabral (Rio de Janeiro), citados nas gravações da PF.
À parte o interesse da oposição de estender o caso Cabral, o pedido dos integrantes da CPI faz sentido. Abreu não é o único diretor da Delta a figurar no inquérito, embora seja, de fato, quem apareça como interlocutor frequente de Cachoeira nas escutas telefônicas. No inquérito que tramita na 11ª Vara Criminal Federal de Goiás aparecem ainda os nomes de Carlos Pacheco, diretor-executivo licenciado da Delta, e Heraldo Puccini Neto, responsável pela empresa na Região Sudeste e considerado foragido da Justiça.
Ao lado de Cachoeira, Abreu e outros cinco integrantes do grupo, Puccini Neto foi denunciado pelo Ministério Público do Distrito Federal por formação de quadrilha e tráfico de influência. O bicheiro e seus amigos são acusados de montar um esquema para fraudar o processo de licitação para emissão de bilhetes eletrônicos do sistema de transporte público na capital do País, um negócio avaliado em 60 milhões de reais.
Como um Al Capone do Cerrado, o contraventor não teve a menor preocupação em manter as aparências em relação às declarações de Imposto de Renda. O ano em que Cachoeira mais pagou impostos foi 2006, quando ressarciu o Leão em 2,8 mil reais. Durante dois anos, 2003 e 2004, simplesmente não pagou nada ao Fisco, apesar de, segundo a PF, ter movimentado milhões de reais. Só no cartão de crédito chegava a gastar cerca de 500 mil reais por ano, ao mesmo tempo que declarava à Receita ter recebido menos de 20 mil reais em rendimentos tributáveis. Cachoeira, diz a polícia, costumava guardar dinheiro em casa, num cofre, e declarou possuir 1,5 milhão de reais em espécie em sua residência.
A PF desconfia que, após ter sido multado em 1,24 milhão de reais por movimentação financeira incompatível com os movimentos declarados, o bicheiro tenha passado a disfarçar suas fontes de rendimento por meio de parentes usados como laranjas. A ex-mulher Andréa Aprígio, de quem se separou em 2004, por exemplo, é quem aparece como proprietária de uma de suas empresas de fabricação de medicamentos genéricos, a Vitapan, com sede em Anápolis. Seu ex-cunhado Adriano, irmão de Andréa, seria outro laranja.
Em diálogo interceptado pela PF, o bicheiro demonstra inclusive preocupação com a separação iminente de Adriano, ao comentar com a mulher, Andressa, ao telefone: “O Adriano tá largando a Suzane. Os trem (sic) tá tudo no nome dele!” Adriano possui uma confecção, a Rádio Mega FM e a Rede Brasiltur de Televisão, além de participação na Vitapan com a irmã Andréa.
Em algumas negociações de compras de imóveis por Andréa ou por Adriano, Cachoeira aparece como o autor de empréstimos, embora aparentemente não tivesse condições financeiras para movimentar quantias significativas, como os 3,2 milhões dados ao ex-cunhado para adquirir participação societária em uma companhia na Argentina. Andréa, por sua vez, declarou ter comprado um apartamento de 1 milhão de reais no Rio de Janeiro, em 2010, graças a um empréstimo do generoso ex-marido.
A real dimensão dos negócios de Cachoeira ainda é desconhecida, mas a divulgação de novos tentáculos de sua organização criminosa fragiliza o argumento utilizado pela mídia para justificar suas relações com o contraventor: o de que ter um criminoso como fonte é aceitável se ele serviu para evitar prejuízo aos cofres públicos.
Pergunta-se: para fazer denúncias sobre o governo, os jornalistas que tinham Cachoeira como fonte encobriram ou não um meliante maior? As denúncias obtidas por meio do esquema do contraventor, à base de grampos e gravações clandestinas, eram mesmo mais significativas do que os crimes que ele próprio praticava? Qual seria o papel de um jornalista em um caso desses: ajudar um fora da lei a derrotar grupos adversários ou investigá-lo e destruir o esquema de todo mundo, inclusive de um senador envolvido com o bando? Ou interessava a alguns meios de comunicação que tal organização existisse?
Uma coisa é certa: ao contrário do que tenta afirmar uma parte da mídia, Cachoeira não pode ser comparado a Mark Felt, o agente do FBI apelidado de Garganta Profunda essencial nas investigações do Washington Post que levaram à renúncia de Richard Nixon. Felt pode ter feito tudo por vaidade e por sede de poder, mas não por dinheiro. Outro ponto: suas dicas eram corretas, enquanto nem tudo que o jornalismo “investigativo” de Cachoeira produziu guardava relação com a verdade ou com o interesse público.
Fonte, Carta Capital.