O Monstro da Mamadeira: Quando jornalistas são irresponsáveis e criminosos e o Judiciário se deixa levar

Publicado em: 27/01/2012

Por Rita Colaço – Quem se lembra da mãe que ficou nacionalmente conhecida como "Monstro da mamadeira"?  Trata-se do caso de Daniele Toledo do Prado, de 21 anos à época, mãe solteira e de poucos recursos, acusada pela polícia de haver assassinado a própria filha, Vitória, de um ano de três meses, com cocaína adicionada à mamadeira.

Um detalhe no mínimo curioso é que, na semana anterior à morte de seu bebe, Daniele havia registrado queixa de estupro contra um médico-residente no pronto-socorro onde sua filha estava internada.

 
Indagava, na ocasião (2006), Carlos Brickmann: "Terá sua ousadia, de acusar um futuro-doutor, algo a ver com a tragédia que se abateu sobre ela, com a participação intensa das autoridades e da imprensa?"
 
[…] Fica transparente a intenção, já demonstrada anteriormente à morte da criança, de incriminar Daniele para desqualificar sua denúncia de estupro.
A partir dessa acusação, endossada pelo corpo médico, as coisas se precipitaram. Teria sido feito pelo Instituto de Criminalística de Taubaté um exame toxicológico preliminar (mais tarde especificado como sendo um exame rotineiro, o Blue Test – O Estado de S. Paulo, 06/12/2006; Jornal da Tarde, São Paulo, 07/12/2006) e o resultado deu positivo para a presença de cocaína. Foi o que declarou o delegado da Delegacia de Investigações Gerais (DIG) de Taubaté, o mesmo que estaria investigando o estupro sofrido por Daniele (Diário do Povo, Campinas, 31/10/2006). Sem mandato de busca e apreensão, pois segundo esse mesmo delegado, “a suspeita autorizou a busca”, os policiais foram até a casa de Daniele. Ao entrarem para a vistoria, só estava o filho mais velho de Daniele, um menino de três anos (Globo Online, 05/12/2006). Lá os policiais recolheram uma mamadeira com o tal pó branco, que também foi analisado e também deu resultado positivo.
Daniele foi presa em flagrante e todos os veículos de imprensa se esmeraram em realizar o seu linchamento moral. Na cadeia, as  detentas realizaram o seu "justiçamento".
foi espancada por 19 presas durante horas, mais precisamente, das 3hs às 7hs (Mogi News, Mogi das Cruzes, 06/12/2006), teve fratura do maxilar e apresentava hematomas por toda a cabeça. Ao final do dia 30 de outubro, uma segunda-feira, foi levada para o Pronto Socorro da Santa Casa de Pinhamonhagaba. Permaneceu desacordada e a Santa Casa chegou a cogitar de seu envio para uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Durante esse tempo não pôde ter a visita de sua advogada, Dra. Gladiva de Almeida Ribeiro, e nem de seus pais, que sequer tiveram o direito de ter notícias sobre seu estado de saúde. Sua mãe só conseguiu vê-la depois de 15 dias dos acontecimentos. No hospital esteve sempre escoltada por policiais (Vale Paraibano, S. José dos Campos,  01/11/2006, 02/11/2006 e 14/11/2006). Com um quadro de traumatismo craniano e lesão neurocerebral, surpreendentemente ela teve alta depois de três dias e foi encaminhada, em 2 de novembro, para a Cadeia Pública de Caçapava. Foi preciso que a advogada, Dra. Gladiva, conseguisse uma autorização para levar sua cliente ao Pronto-Socorro de Caçapava (Vale Paraibano, S. José dos Campos, 04/11/2006).  [OVPSP]
 
Resultado: Depois de ter a sua reputação destroçada em rede nacional e ser presa, Daniele foi barbaramente agredida por 19 detentas, na carceragem da Cadeia Pública de Pindamonhongaba, SP,  embora o Estado tivesse o dever legal de garantir a sua integridade.
Ela teve fratura na clavícula e perda parcial da visão e audição do lado direito, decorrente dos espancamentos sucessivos desferidos pelas outras detentas nos 37 dias em que ficou sob custódia.
 
Passado todo esse tempo e martírio, Daniele Toledo do Prado foi libertada: a perícia comprovou que não havia cocaína na mamadeira do bebê e que ele não havia falecido em decorrência da ingestão de drogas. Entretanto,

a Justiça de Taubaté concedeu a Daniele “liberdade provisória”. O juiz considerou que outros laudos não iriam mudar o que já estava esclarecido, ou seja, a ausência de cocaína. Apesar disso o promotor autor da denúncia reafirmou que não pediria a liberdade da mãe, declarando: "A prisão dela não foi fundamentada somente pelo exame que mostrou cocaína. O comportamento dela e o depoimento de testemunhas são suficientes para mantê-la presa. Aconteceram, por exemplo, várias reincidências de internações, que podem ser indícios de maus tratos" (Diário do Povo, Campinas, 06/12/2006). Esqueceu de dizer se “indícios de maus tratos” justificam um indiciamento por homicídio qualificado, tal como havia feito.[OVPSP]
 
O Observatório das Violências Policiais de São Paulo elenca como agentes da violência de Estado:
corpo médico do Hospital Universitário da UNITAU (Universidade de Taubaté) e do Pronto-Socorro Municipal de Taubaté, particularmente a médica plantonista e o quintanista de medicina acusado de estupro; autoridades e funcionários da Cadeia Pública de Pindamonhagaba; o delegado titular da Delegacia de Investigações Gerais (DIG) de Taubaté; o delegado seccional de Taubaté; o Promotor do Júri de Taubaté e o juiz da Vara do Júri da Comarca de Taubaté e a imprensa escrita e falada. [OVPSP]
A sanha contra a mãe injustiçada por membros de vários órgãos do Estado e do corpo médico de um hospital universitário particular e de um pronto-socorro continuou, apesar de ficar claro que a acusação contra ela foi forjada. O Tribunal de Justiça de São Paulo negou o habeas corpus para trancar a ação penal em que Daniele é acusada de matar sua própria filha. Além disso ela vem sofrendo constrangimento ilegal por parte do juiz da Vara do Júri de Taubaté. A liminar foi negada em abril de 2007 e confirmada pelo Tribunal em agosto. Assim o sofrimento de Daniele continua (Consultor Jurídico, 16/08/2007). [OVPSP]
Em setembro de 2008 Daniele conseguiu ser absolvida. Em 2010 processou o Estado.

Em 22 de janeiro de 2012, há quatro dias atrás, o Consultor Jurídico informava que o juiz  Paulo Roberto da Silva, da Vara da Fazenda Pública de Taubaté, São Paulo, entendeu como justa a indenização no valor de R$ 15 mil de indenização por danos morais. E igualmente justo o valor de R$ 414,00 como pensão vitalícia pela invalidez.

 
 
Segundo o sítio Surgiu.com
O valor é R$ 5.000 menos do que o humorista Rafinha Bastos foi condenado a indenizar a cantora Wanessa Camargo por uma piada infeliz. [Destaquei]

O pedido inicial por danos morais era de 500 salários mínimos, ou R$ 345 mil.

Quanto aos danos materiais, o juiz, que não tem autorização para comentar processos em andamento, definiu indenização de R$ 10 mil e pensão vitalícia de R$ 414. O pedido era de R$ 150 mil e R$ 2.070.

A Defensoria Pública, que representa Daniele, recorreu da sentença, mas a Procuradoria-Geral do Estado disse que "já interpôs recurso de apelação". O órgão não comentou o processo.

 
Não foi e – desgraçadamente – não será o último exemplo em que a imprensa – nossos ilustrados e democráticos jornalistas – exercem o seu ofício como se fossem autênticos Oficiais do Tribunal do Santo Ofício.
 
 
Acredito que seja necessário exigir maior responsabilidade social dos meios de comunicação. A mesma Constituição que garante o direito à liberdade de expressão também garante o direito ao sigilo de fatos e provas num determinado processo. Assim, se a mídia divulgar fatos que possam gerar dano para uma solução justa no processo, essa prova deve ser excluída do trâmite. A liberdade de expressão não pode estar acima do direito a um julgamento isento.
 
O mais grave dessa situação é a contaminação que o julgamento paralelo realizado pelos meios de comunicação de massa pode acarretar ao princípio constitucional de um processo público com todas as suas garantias. E esse risco sistêmico chega ao seu ápice quando o Poder Judiciário, abandonando sua missão constitucional da busca incessante da justa decisão, segundo o seu livre convencimento, amolda-se ao julgamento paralelo realizado pela mídia a fim de satisfazer a opinião pública.
 
Veja o caso em detalhes no Observatório da Violência Policial de São Paulo [Aqui] e também as pertinentes reflexões no excelente artigo do Carlos Brickmann Palavra que fere, palavra que mata,  publicado no Observatório da Imprensa, em 12/12/2006, na edição 411, em seção emblematicamente denominada Assassinato de Reputações[Aqui].
 
 
*Rita Colaço é historiadora.

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