O processo de reintegração de posse de Pinheirinho parece ter sumido no meio da poeira da tragédia do Rio de Janeiro, onde prédios desabaram no Centro da cidade. Pelo menos esta é a impressão que tenho tido, ao ver o espaço que a grande imprensa tem dado, fazendo da comoção no Rio um fato de proporções imensas, com inúmeros helicópteros, entradas ao vivo, acompanhamento em tempo real e tudo que uma boa cobertura de um fato tem direito.
É como se fosse uma tragédia menor a violação dos direitos humanos durante o cumprimento da ordem de despejo do terreno em São José dos Campos, que pertence à massa falida da empresa Selecta, de propriedade do especulador financeiro Naji Nahas.
Os prédios do Rio teriam caído por problemas estruturais. Isso já é de domínio público e até os leigos já sabem meandros de explicações técnicas, devido à quantidade enorme de especialistas mobilizados para explicar o fato. E quanto às casas derrubadas em São José dos Campos? Ninguém sabe. Quase ninguém viu e a maioria dos que viram, não pode contar. Há relatos de moradores de que até mesmo seus celulares teriam sido apreendidos, impedindo assim que pudessem registrar a ação.
De um lado, o Rio de Janeiro empreende as buscas pelos corpos de vítimas e conta os prejuízos do desmoronamento dos prédios que passavam por obras ilegais. Em outro extremo, os agora ex-moradores de Pinheirinho não têm a menor noção de quantos podem ser os seus desaparecidos. Entre mortos e feridos, cerca de mil famílias são vítimas da especulação imobiliária e da mais valia, que ignorou a lei do usucapião, dentre outros aspectos legais do caso.
Pinheirinho – A ação truculenta da Polícia Militar, realizada no início da manhã de domingo (22), não encontrou resistência. A maioria dos moradores ainda dormia, quando por volta das 6h, a PM começou a lançar bombas de gás lacrimogêneo dentro dos barracos. Cerca de 6 mil pessoas de 1700 famílias, nem tiveram tempo de juntar suas coisas, enquanto carros blindados, Tropa de Choque helicópteros em uma operação de guerra que reuniu cerca de 2 mil policiais assinavam a ordem de despejo dos moradores com balas de borracha.
Ainda na sexta (20), os moradores comemoravam a anulação da reintegração, ainda que temporária, pela Justiça Federal. Também havia um acordo feito entre advogados dos moradores, o senador Eduardo Suplicy (PT), deputados estaduais e federais e representantes do proprietário do terreno, suspendendo a retomada da área por 15 dias. Mesmo assim a PM foi cumprir a ordem da Justiça Estadual e não voltou atrás nem quando uma Oficial de Justiça entregou uma suspensão da desocupação, assinada pelo juiz federal Samuel de Castro Barbosa Melo, alegando “conflito de competências”.
Holocausto – O dia 27 de janeiro foi a data escolhida para lembrar o mundo das vítimas do holocausto. Guardadas devidas proporções, a batalha de Pinheirinho com seus gritos, choros, correria, tiros e toda sorte de desrespeito com os moradores do local tem uma semelhança com os campos de concentração. Principalmente porque, ao deixar a ocupação, os moradores eram encaminhados a uma triagem.
Tendas brancas foram montadas no Centro Poliesportivo do Campo dos Alemães, logo ao lado e as pessoas tinham que se cadastrar, para receber uma senha ou uma pulseirinha azul e assim ter o direito de voltar em suas casas e reaver seus pertences, antes da demolição. Mesmo assim, os moradores sentiram na pele o termo “tratorar” e viram seus barracos serem destroçados ainda com tudo dentro, sem o direito de manifestar sua dor, pois o desespero era respondido com bombas.
ONU – A Organização das Nações Unidas (ONU) enviou um Apelo Urgente às autoridades brasileiras pedindo explicações sobre o caso. Na opinião da relatora da ONU para o direito à moradia adequada, a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, o país caminha para trás no campo dos direitos humanos e a pauta da inclusão social virou "sinônimo apenas da inclusão no mercado".
Em entrevista à Folha de São Paulo, Raquel afirmou ainda que, no plano mais geral, entende que o desenvolvimento econômico brasileiro está acirrando os conflitos em torno da terra, nas cidades e nas zonas rurais. Ela defende ainda que "as forças progressistas", que na sua visão abandonaram a pauta social, retomem "essa luta".
A relatora da ONU lembra que o direito à moradia adequada está estabelecido nos pactos e resoluções internacionais assinados pelo Brasil e que estão em plena vigência e que não se remove pessoas de suas casas sem dar alternativa de moradia adequada. “Não pode haver remoção sem que haja essa alternativa. Aqui se tem uma responsabilização muito grave do Judiciário, que não poderia ter emitido uma reintegração de posse sem ter procurado, junto às autoridades, verificar se as condições do direito à moradia adequada estavam dadas”, pondera.
Ação tranquila – Ironicamente, o chefe de comunicação do Comando Leste da PM paulista, Antero Alves Baraldo, afirmou em coletiva de imprensa que, “considerando o tamanho da área e da operação, constatamos que foi uma ação tranquila. Houve manifestação, houve resistência, atearam fogo em carros, mas a polícia interveio e pessoas foram presas”.
A notícia é de que ao menos 34 pessoas foram presas e há sete desaparecidos, mas não se pode contar mortos ou feridos, já que nem os hospitais repassam as notícias e nenhum órgão estadual ou municipal publicou lista oficial com número de feridos, mortos, desaparecidos ou presos na operação.
Letras tortas – Sem entrar nos meandros de quem é Naji Nahas e sua vida pregressa, vamos falar apenas da lei de Usucapião, que aliás deveria ter sido garantida aos moradores de Pinheirinho, uma vez que sua prerrogativa é a de adquirir uma propriedade pelo uso. O código civil brasileiro estabelece que a posse por usucapião se dá após exercida por quinze anos. Em casos especiais, de posse para domicílio, o prazo é de dez anos e por fim, se o ocupante não possuir outro imóvel, o prazo cai para cinco anos.
Os ocupantes moravam em Pinheirinho por mais de oito. O judiciário estadual apareceu para cumprir uma reintegração de posse em nome da justiça e de fazer cumprir a lei, mas mostrou que o código civil, para muitos, é letra morta e serve para entortar algumas realidades.
Foto, Cláudio Capucho.