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Carta-Inventário de Zivé Giudice

Publicado em: 11/03/2019

O tempo é implacável, e tão implacável quanto o tempo é a experiência pessoal, íntima, que ele torna possível. Como ela, não há como nos escondermos em subterfúgios e, por causa dela, somos colocados frente a frente com o que somos. Talvez até aqui não consigam intuir o propósito desse texto, mas, se eu não fracassar na exposição dos motivos que me fazem escrevê-lo, tudo ficará em seu devido lugar.

Da primeira vez que fui exonerado do cargo de Diretor do MAM, Museu de Arte Moderna – BA, elaborei um documento em que relatava, com tom enérgico, as causas de meu desligamento. O texto, mirando o nervo, acertou a veia da não docilidade, da insubordinação de quem se pensa autônomo, de quem se expressa por um modo de pensar autônomo. Hoje, depois de, em junho de 2017, ter retornado à anterior função de diretor do MAM, recebo com surpresa a notícia de minha exoneração.

Desta vez, a acidez do antigo texto já mencionado dará lugar à temperança da sabedoria que cabe a alguém que não tem como se furtar ao peso incontornável de quase 67 anos de vida. Poderão pensar alguns que isso é, na verdade, o esconderijo de uma covardia ou modéstia, lugar dos hipócritas. No meu caso, é antes o contrário. Covardes não agem, covardes silenciam perante injustiças. Minha natureza não abre brechas a esse tipo de comportamento. Pensando nisso, é para a sociedade civil, a quem aqui presto contas, que passarei a expor uma espécie de inventário das mais importantes ações realizadas por mim em nome do MAM. Caberá a ela ajuizar pela justiça ou injustiça desse desligamento.

O primeiro gesto que fiz, tão logo reconduzido à Diretoria do MAM, foi buscar no viço próprio da juventude os novos nomes das artes visuais baianas. Dessa pesquisa, nasceu o projeto da exposição Pertencentes (setembro a outubro de 2017), cuja realização alavancou a produção de dezenove artistas de indiscutível qualidade.

Esse foi o estopim para a condução de uma gestão que primasse por visibilizar o olhar contemporâneo da arte, sem, no entanto, esquecer os artistas de outrora que pavimentaram o caminho por onde os mais novos passam agora. Com vistas a isso, a ideia era ativar o novo e presentear a comunidade com as amostras daquilo que a arte brasileira, constitutiva do gigantesco acervo permanente do MAM, tinha brilhantemente produzido.

Não entendia o porquê de tantas obras repousarem na poeira dos arquivos, longe dos olhares de um povo que MERECE e, mais do que isso, de um povo que tem o direito de conhecer sua história também na perspectiva da arte, a mais revolucionária demonstração de força e empoderamento que a experiência humana pode engendrar! Pensei e penso nos museus, mais especificamente no MAM, como espaço de pertencimento sociocultural, para o qual é preciso, em um primeiro momento, haver o chamamento da sociedade, um convite expresso dirigido a todas e todas, sem quaisquer distinções, para que procedessem a apropriação de equipamentos de cultura; o MAM devém, assim, um espaço de ressignificação social. Daí, consolidaram-se as seguintes exposições:

• Da Razão ao Informalismo (agosto de 2017, com obras de oito artistas);
• Mostra Gráficas 3 (agosto de 2017, com obras de professores e alunos da Escola de Belas Artes da UFBA);
• Um Recorte da Figuração do Acervo do MAM (dezembro de 2017, com participação de 11 artistas);
• Escultores contemporâneos brasileiros (janeiro de 2018, com participação de 17 artistas);
• Acervo dos Salões do MAM (fevereiro de 2018, com obras de 19 artistas);
• ALFREDO VOLPI (março a julho de 2018);
• Arte Eletrônica Indígena (agosto a setembro de 2018, com obras cocriadas por indígenas brasileiros e artista da Bolívia, Reino Unido e Brasil);
• Acervo do MAM (outubro a novembro de 2018, com obras de 11 artistas brasileiros, em homenagem a Mário Cravo Júnior);
• MESTRE DIDI, Ancestralidade e resistência (outubro a novembro de 2018);
• Vértice (dezembro de 2018 a abril de 2019, com obras de 20 artistas); e
• AURELINO DOS SANTOS, A letra que faz o mundo (dezembro de 2018 a abril de 2019).

Para algumas dessas exposições, contei com parcerias decisivas. Entre as colaboradoras mais frequentes, destacam-se a Galeria Paulo Darzé e a Roberto Alban Galeria, ambas sediadas em Salvador/BA, e a Almeida & Dale, de São Paulo. A elas, meu agradecimento especial. Da mesma forma, serei eternamente grato às pessoas de Bel Borba, Caetano Dias, Almandrade e Sérgio Rabinovitz, membros do Conselho Curatorial, pela intransigente defesa de que o MAM, como equipamento de cultura, deve mesmo é alinhar-se com as artes visuais, o mais importante objeto de compromisso do museu.

E não é só! O MAM, na esteira do que se estabeleceu, no decorrer deste século, como conceito de museus de arte, abriu-se a outros domínios, ultrapassou a fronteira da arte visual para afinar-se com outras expressões que se estreitassem ao propósito do museu, a saber: PRODUZIR ARTE. Os exemplos disso são:

• 20 edições do Projeto MAM abraça as crianças, com público total estimado em 20.000 pessoas. Esse projeto é, no âmbito pessoal, especialmente valoroso, pois trouxe ao Museu pessoas que jamais se sentiram convidadas a frequentar suas instalações, jamais se sentiram contempladas em usar um equipamento público voltado à uma arte historicamente usufruída por especialistas . Nessas 20 edições, muitas crianças e jovens descobriam o quanto a arte pode ser combativa, porta-voz das demandas populares silenciadas covardemente por aqueles que só querem negar o novo, negar a mudança dos tempos.
• Participação efetiva na revisão do projeto de reforma das instalações do MAM, com o objetivo de evitar a descaracterização dos espaços e, com isso, mostrar-se rigorosamente obediente ao Protocolo de funcionamento da instituição. Quanto a esse ponto, cabe uma importante indagação: queremos um Museu que, pela sua localização privilegiada e pelo acervo arquitetônico que lhe constitui, funcione apenas como local “pitoresco” de um restaurante, ou o restaurante ser um elemento indexado a um projeto de cultura? Em outras palavras, queremos um Museu em que ocorrem oficinas, mostras artísticas, espetáculos culturais no qual há, também, um restaurante, como lugar de convivência, ou queremos um Restaurante que se utiliza, luxuosamente, de um Museu? Em uma pergunta: Qual deve ser o atrativo do MAM? Não creio que haja outro atrativo para o MAM além dele mesmo. Como tenho dito há anos, O ATRATIVO DO MAM É O MAM!!!!
Ainda quanto ao processo de reforma, o vasto período pelo qual se arrasta constituiu, devo dizer, outro elemento constritor para a gestão. Exemplo disso é a limitação espacial do Casarão em virtude da interdição de seu pavimento superior. Ainda sobre a questão da reestruturação do MAM, assim como, indiretamente, de todos os museus, havia recebido do Governador Rui Costa a incumbência de coordenar,junto com a Secretária, o processo de retirada desses equipamentos dos domínios do IPAC, por incompatibilidades conceituais. Fizemos esse pleito em um documento entregue ao governador, assinado por dezenas de artistas, intelectuais, galeristas e curadores, na ocasião de um encontro do governador com artistas representantes de diversas linguagens. Não obstante o governador ter determinado a mudança, a Secretaria da cultura nada fez e, se fez, nós – museus e artistas – não tomamos conhecimento.
• Reativação das oficinas de litogravura, xilogravura e gravura em metal, cujo formato reduzido (já que não se expandiram para outras técnicas) deu-se pela limitação espacial provocada pela reforma do galpão destinado a essa atividade.
• Criação do Projeto Acústicos do MAM, em que se apresentaram, em quatro edições, importantes artistas da música brasileira e local. Esse projeto foi executado pela E33 Entretenimento, a quem agradeço na pessoa de seu diretor Eduardo Mattos. Além de fomentar a cultura musical, esse projeto funcionou como forma de captação de recursos econômicos para viabilizar importantes ações. De duas das quatro edições, as contrapartidas ( todas arbitradas pela gestão do Museu, com a participação do Conselho de Curadoria, e posteriormente admitidas pelo órgão dessa competência) permitiram a aquisição dos seguintes materiais e equipamentos permanentes e de manutenção:

• criação da marca “Acústicos no MAM”;
• 02 (dois) aparelhos de computador (Notebook);
• 01 (uma) furadeira;
• 01 (uma) parafusadeira;
• 01 (um) rolo para litrogravura; 0. 01 (um) kit de 60 (sessenta) brocas;
• 03 (três) latas de 18 (dezoito) litros de tinta branca (destinado ao MAB para exposição Berlim-Bahia);
• 01 (uma) lata de massa corrida de 18 (dezoito) litros (destinado ao MAB para exposição Berlim-Bahia);
• 02 (dois) rolos de lã para pintura (destinados ao MAB para exposição Berlim-Bahia) ;
• 10 (dez) folhas de lixa (destinados ao MAB para exposição Berlim-Bahia);
• 03 (três) rolos de fita adesiva (destinados ao MAB para exposição Berlim-Bahia);
• 40 (quarenta) refletores com lâmpada PA 38 para as salas de exposição;
• 40 (quarenta) lâmpadas LED;
• 20 (vinte) lâmpadas (PA 38) especiais para exposições;
• 400 (quatrocentos) parafusos para montagem das exposições;
• produção de conteúdo para as exposições de Aurelino dos Santos, A letra que faz o mundo, e Vértice, sob a forma de: plotagem, banners, logomarca de identificação das amostras e convites eletrônicos;
• material e insumos destinados à execução da 17ª edição do MAM abraça as crianças.

A julgar pelo tempo em que vivemos, a julgar pelo lugar conferido à cultura pelos órgãos e autoridades governamentais, pouco importando aqui qual seja sua inclinação ideológica, os leitores dessa carta-inventário, assim espero(!), serão conduzidos a pensar ser essa, muitas vezes, a única estratégia de sobrevivência dos atuais equipamentos de cultura. Vale ressaltar que as aquisições mencionadas acima referem-se às duas primeiras edições do Projeto Acústicos. As duas últimas contrapartidas do Acústicos ainda estão por serem demandadas. Essas contrapartidas se constituíram na única fonte de recursos do MAM.

Exposto isso, a esses mesmos leitores talvez seja pertinente perguntar: Fez pouco, em 18 meses, quem realizou essas ações sem dispor de qualquer recurso institucional? Contribuiu pouco com a cultura aquele que empunhou essas bandeiras? É claro e natural que ocorreram críticas à gestão, principalmente pela condução rigorosa, que não transigiu, sob nenhuma alegação, seja ela de cunho pessoal ou institucional, a proteção do Museu e, consequentemente, da função social com a qual está relacionado. Infelizmente, não é possível agradar a todos, por mais bem intencionados que sejam; não é possível atender a todas as demandas, mesmo que legítimas. Mesmo assim, tais perguntas objetivas precisam ser feitas e pude fazê-las a tempo de esse acontecimento não ser, ardilosamente por alguns, colocado no limbo do esquecimento, nesse lugar de não memória. Aqui é preciso não esquecer o momento inoportuno do desligamento: a notícia de minha exoneração veio no dia da abertura das festas carnavalescas. Por que será? É delírio pensar que se tratou de uma estratégia de inviabilizar qualquer discussão sobre causas que motivaram a exoneração, à revelia da comunidade geral e, mais estritamente, da comunidade artística?

Todos que compartilharam ou estiveram próximos da minha gestão compreendiam e apoiavam a minha resistência e a minha recusa em dar voz àqueles que, a despeito dos seus cargos, nada tinham de substancioso para colaborar com o projeto de ressignificação do MAM. Não se tratava de iconoclastia ou irreverência, mas, antes, de criar proteção contra pessoas que nada conhecem do objeto arte.

Chegando perto do fim dessa carta, misto de manifesto e inventário, é sobre o futuro, a memória do futuro, que quero tratar agora. Nesses últimos meses, foram muitas as discussões acerca do ano em que o MAM completa 60 anos de existência com a consequente concepção do calendário de comemorações. Resta-nos saber se as ações programadas em minha gestão serão levadas a cabo. Entre elas, ressalto:

• exposição de Adriana Varejão (com início previsto para abril);
• exposição de Ana Elisa Egreja (prevista para junho);
• exposição do artista Vik Muniz (prevista para julho);
• exposição de Mariana Palma (ainda com data indefinida );
• exposição Geração 70 com respectivo lançamento de livro (previstos para setembro);
• exposição de Leda Catunda (prevista para dezembro);
• além de outras em fase de ajuste no calendário.

Convicto de que cumpri, junto à sociedade, com aquilo que deve ser obrigação de toda pessoa à frente da execução de serviços públicos, resta-me agora agradecer o decisivo incentivo de familiares e amigos durante essa jornada. Aos colegas de trabalho, meu muito obrigado pela preciosa contribuição com o MAM e por NUNCA se furtarem a servir aos projetos executados pelo e no museu. Que todos saudemos a arte, centro indiscutível disso que chamamos cultura!!

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