Por Gustavo Capela* – O discurso do senso comum há muito tempo no Brasil gira em torno da “apolitização” da política. E por apolitização, normalmente, entende-se a rechaça aos partidos políticos. Crises de representatividade, desmoralização e oportunismo das figuras públicas e uma visão de corrupção generalizada permeiam esse discurso.
Isso não significa que não existem evidências e situações históricas que deram razão a esse pensamento, de uma ou outra forma, mas significa que essa percepção foi consolidada, a ponto de virar inquestionável. O senso comum, aliás, tem como uma de suas principais características essa inquestionabilidade. Isto é, o senso comum se entende como um conhecimento que parte daquilo chamado de “bom senso”. As frases do senso comum são repetidas tantas vezes que formulamos as afirmações partindo da expressão “todo mundo sabe que”. Assim, “todo mundo sabe que” político é corrupto, que o Congresso não nos representa e que a política é o lugar da sacanagem.
Na nossa opinião, isso se deve ao que Marcos Nobre intitulou de “pemedebismo”. O PT, ao se aliar com os “velhos donos do poder” e ao se apropriar de “velhas práticas” de fazer política, deixou a parcela da classe média com ânsia por mudança descrente com a política. A forma como a mídia vendeu os episódios do “mensalão” e as declarações públicas de Lula em apoio a Renan Calheiros, Sarney, dentre outros, aparentou como uma união entre pessoas do mesmo molde, origem e pensamento.
As indignações nas ruas refletem isso. São as manifestações das indignações do senso comum. Daquelas ideias que são compartilhadas, consciente ou inconscientemente, e que dão algum sentido ao dia-a-dia da maioria da população.
Rechaçando a política, o povo tomou a rua. E a tomou para fazer política. Sabendo ou não, querendo ou não. O Professor Ricardo Ismael, cientista político da PUC/RJ, chamou atenção para o fato de que todas essas manifestações tiveram origem na de São Paulo. Lá, o MPL puxou ato contra o aumento de passagens que, segundo ele, ocorreu principalmente porque o Ministro da Fazenda pediu que alguns Estados segurassem os aumentos para desacelerar a inflação. Fazendo isso, a maioria das grandes cidades não teve reajuste no período de férias, o que causou mais impacto do que o normal. É obvio que o aumento em si é problemático e acreditamos que a manifestação ocorreria de qualquer forma, mas a conjuntura na qual muitas pessoas se incomodam diretamente (especialmente estudantes) ajuda na construção de atos de massa.
Com esse sentimento, o primeiro ato na Paulista teve 5 mil pessoas. 5 mil pessoas em sua grande maioria estudantes de classe média que foram brutalmente reprimidos. No segundo ato, esse número pulou para 20 mil. Novamente reprimidos, mas agora com a cobertura da grande imprensa, a classe média se indignou. Indignou-se contra a polícia. Indignou-se contra os governos. Porque impediam a classe média de se manifestar. De protestar. Inicialmente, pois, as manifestações se massificaram pela vontade de prestar solidariedade e dizer em alto e bom tom que, “sim, nós da classe média temos o direito de nos manifestarmos”.
Um bom exemplo disso é a diferenciação que a mídia em Brasília fez das duas primeiras manifestações que tomaram a cidade. A primeira, com mais ou menos 300 pessoas, foi puxada primordialmente pelo MTST junto ao Comitê Popular da Copa. Representando uma classe trabalhadora esquecida, o MTST foi duramente criminalizado pela Globo e outros veículos da grande imprensa, inclusive nos levando B&D juntos, pois apoiávamos aqueles que não tem o direito tão manifesto assim de se rebelar: os mais pobres e invisibilizados. A mídia fez esforços para diferenciar essa marcha da que ocorreu no sábado. Nela (a de sábado) a grande maioria das pessoas era da classe média. A pauta era semelhante (denunciar os gastos excessivos da copa do mundo em detrimento do investimento em problemas sociais), mas a origem social, diversa.
Na sexta, não houve confronto com a polícia. No sábado, houve repressão pesada na frente do Estádio Nacional. A primeira, foi tida como violenta devido à queima de pneus. A segunda, divulgada como pacífica com “alguns-pequenos” vândalos. Essa linha editorial, de apoiar os manifestantes, inclusive, foi alterada após a imprensa perceber que o movimento nacional tinha espaço para uma ideologia mais conservadora.
Atentos para a insurgência nacional e precisos na análise do vazio que seguiam os protestos, a mídia mudou de tom. Em suma, perceberam que falavam da classe média lato sensu. Era ela, em peso, que se mobilizava para ir às ruas. Não estavam analisando uma quantidade minúscula de militantes radicais de esquerda ou de pobres tradicionalmente esquecidos e invisibilzados. Estavam falando daqueles que têm poder de persuasão cultural, que têm imagem defendida pela própria imprensa, que dão apoio ao império e monopólio dos meios de comunicação da Folha, do Estadão e da Rede Globo, etc.
As manifestações, sem pauta específica além do direito de protestar, então começaram a se cobrar pautas e, veja que surpresa!, qualquer pauta passou a ser viável, possível, dentro desse balaio de gato. O importante é protestar, estar na rua, mostrar indignação. Parte disso é atribuível à nossa geração e suas especificidades. Outra parte àquilo que é a juventude em sua essência. O novo, quando se depara com o mundo, o vê com lentes frescas e deve, por isso mesmo, refrescar o funcionamento, tentar introduzir novos rumos, encaixar sua criatividade na caixinha que tudo aglomera.
A juventude do nosso tempo, porém, está extremamente voltada para sua auto-estetização virtual. As imagens das redes sociais, hoje, às vezes interessam mais do que a vida real. Os youtubes, facebooks e instagrams são capazes de simular o mundo das celebridades em pequenos círculos, dando grande satisfação aos acontecimentos relacionados a essa imagem construída e aos envolvidos no processo. Ir ao casamento da minha tia se torna legal quando posto uma foto interessante no Instagram, ou um vídeo engraçado no Youtube. Sem essas referências, quem quer saber do casamento da minha tia? Ninguém.
A referência ao mundo das celebridades “reais” é constitutiva dessa formação, entretanto, havendo real vínculo entre o mundo que se quer viver (o do espetáculo real) e aquele em que se vive (o espetáculo-micro). Não é por acaso que a Globo, apesar de rechaçada em toda manifestação, ainda é referência para muitas pessoas na hora de emitir um juízo sobre tudo que está ocorrendo. Todo mundo liga na Globo para saber as notícias e quando alguém aparece lá, acaba nas redes sociais.
Parece, então, que a juventude se organiza nas redes sociais e vai para as ruas para, depois, voltar e contar suas experiências nas redes sociais. É lá (na rede) que tudo parece importar. Lá que estão as discussões, lá que está a “paciência” de cada um para ler posições diversas, lá que os jovens encontram as razões para se manifestar.
Nesse contexto, parece natural que cada vez mais há a inserção do imaginário conservador nas manifestações. E por que isso? Porque 1) o senso comum rechaça todo tipo de organização por descrença fomentada pela mídia; 2) a juventude vive uma realidade de extrema estetização do seu modo de viver; 3) o nacionalismo volta à tona como solução de todos os nossos problemas, sem se atentar para o contexto geral de internacionalização dos problemas sociais; e 4) as redes sociais têm contribuído para dar caráter supérfluo a tudo que é presencial e mais profundo.
Os avanços da esquerda nesse ambiente parecem mais tortuosos, portanto. Demanda-se um esforço de disputar o senso comum e também (o que parece mais doloroso) fazer essa disputa na rua com a extrema direita, que não só reforça como instrumentaliza o senso comum a favor da destruição completa de qualquer diferenciação.
A busca por pautas que unifiquem e deem caracterização mais política às marchas é, então, indispensável. Disputar a marcha é disputar toda a concepção de sociedade. Disputar a marcha é, inclusive, disputar o Facebook e todos que ali estão. E disputar não porque a esquerda é oportunista ou qualquer outra pecha que colam em nós, mas porque realmente acreditamos que é necessário pensarmos em uma nova sociedade. Numa sociedade mais justa, livre de opressões, que privilegie a auto-realização dos seres-humanos, ao invés do Capital. Nós não temos medo de nos mostrar, não temos medo de defender nossas posições justamente porque acreditamos, porque achamos que podemos mudar as coisas para melhor. Não se pode dizer o mesmo da grande imprensa e de todos que se escondem por trás dessa e outras ferramentas para diluir seus pensamentos.
Nesse sentido, inclusive, as críticas aos partidos políticos denotam como o suposto “esvaziamento” do conteúdo político das marchas beneficia esses que se escondem. A concepção de partido, para Gramsci por exemplo, é o de uma organização, um aglomerado de pessoas, que defendem um determinado modelo de sociedade. Ele entende “o partido como ideologia em geral, superior aos diversos agrupamentos mais imediatos”. Isso é dizer: as marchas estão criticando as legendas partidárias e as atacando sem reconhecer, às vezes, o oportunismo e dirigismo vindo de outros flancos e outros partidos. Partidos esses que, com ou sem legenda, se organizam, possuem ideologia clara e lutam por uma sociedade com um determinado formato. A mídia é um desses “partidos. A Igreja, a bancada “evangélica” e a FIFA, por exemplo, também. A disputa pelo “despertar” deve, pois, ser uma disputa das consciências e da forma como a classe média tem enxergado o mundo. Escancarar essas realidades serve ao nosso projeto de sociedade, afinal.
A linha que defendemos é que ocupemos as ruas. Que disputemos as pessoas, e que mostremos, com calma, paciência e sinceridade, tudo que acreditamos. Nós temos que liderar pelo exemplo e mostrar que outra sociedade é possível. Sendo-a. Criando-a.
E que assim seja.
*Gustavo Capela é graduado e mestrado em direito pela Universidade de Brasília (Unb).