A lista com 95 nomes cujos sigilos fiscais e bancários foram quebrados por decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), na esteira do caso que investiga o policial militar da reserva Fabrício Queiroz e o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), inclui uma frente de investigação ainda pouco explorada pelo Ministério Público do Rio.
No documento, constam os nomes de nove parentes de Ana Cristina Valle, ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro e mãe de seu filho mais novo, Jair Renan. Além dos nove, outros três parentes de Ana Cristina ocuparam cargos no gabinete de Jair. A própria, inclusive, foi nomeada por Carlos Bolsonaro em seu gabinete na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Ana Cristina viveu em união estável com Jair por cerca de dez anos, entre 1998 e 2008. Assim, as 13 contratações podem configurar nepotismo.
Entre as nomeações, está a do pai de Ana Cristina, José Cândido Procópio da Silva Valle, a irmã Andrea Siqueira Valle, os primos Juliana Vargas, Francisco Diniz, Daniela Gomes e os tios Guilherme Hudson, Ana Maria Siqueira Hudson, Maria José de Siqueira e Silva e Marina Siqueira Diniz. A maioria da família vive em Resende, no sul do Rio de Janeiro, e os parentes foram nomeados para exercer cargos de confiança no antigo gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) entre 2007 e o ano passado. A exceção fica por conta de Andrea Siqueira Valle, que, em 2018, mudou para Guarapari, no Espírito Santo.
A família Siqueira integra há mais tempo a extensa lista de funcionários do clã Bolsonaro. Ao menos cinco deles também trabalharam como assessores no gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, entre 2000 e 2007. Nesse período, estavam lotadas no gabinete em Brasília a irmã de Ana Cristina, Andrea Siqueira Valle; a prima Juliana Vargas; a mãe, Henriqueta Guimarães Siqueira Valle; o irmão, André Luiz Procópio Siqueira Valle; e o primo André Luiz de Siqueira Hudson.
Guilherme Hudson e Ana Maria Hudson, tios de Ana Cristina, recebiam salário bruto de R$ 9.800 cada enquanto trabalhavam para Flávio. A irmã Andrea e os primos Juliana e Francisco tinham salário bruto de R$ 7.300. Já as tias Maria e Marina e a prima Daniela recebiam R$ 4.400, R$ 5.900 e R$ 6.400, respectivamente.
Nepotismo
A quantidade de parentes lotados nos gabinetes pode configurar nepotismo na opinião de dois especialistas que falaram em tese sobre o caso. De acordo com Guilherme France, pesquisador de Direito na FGV-Rio, a Súmula Vinculante nº 13 do Supremo Tribunal Federal (STF) proíbe o nepotismo nos três poderes — União, estados e municípios, alcançando Assembleias Legislativas estaduais —, inclusive a nomeação de parentes de cônjuge. Na opinião dele, mesmo que a Súmula seja de 2008, as contratações tanto no gabinete de Flávio como no de Jair Bolsonaro poderiam, em tese, configurar nepotismo.
“Os princípios da moralidade e da impessoalidade deveriam estar presentes nas contratações. A ausência da Súmula, à época, não impede que a situação do nepotismo seja avaliada caso a caso”, explicou France.
Segundo o advogado Manoel Peixinho, especialista em Direito Público, um parlamentar pode em um caso como esse responder por improbidade administrativa, mesmo após o término do mandato do parlamentar. “Em tese, o parlamentar estaria violando a Súmula 13 do Supremo Tribunal Federal, que define o nepotismo nos Três Poderes”, disse Peixinho. “De imediato, o MP poderia pedir a exoneração de todos os parentes, se ainda estiverem vinculados ao gabinete.” Além disso, explica o advogado, o parlamentar que contratar parentes pode ser considerado inelegível. “Se os parentes forem nomeados sem trabalhar no gabinete, terão de devolver os recursos que receberam como salário aos cofres públicos”, afirmou ele.
Guilherme France lembrou que as contratações de parentes também ferem o Decreto 9.727 editado neste ano pelo presidente e que impõe regras para pessoas que desejem ocupar cargos em comissão e funções comissionadas na administração federal direta, incluindo autarquias e fundações. Pelo decreto, foi fixado até processo seletivo para as contratações com análise de currículos, capacidades e outros quesitos. “Ele mesmo (o presidente) estabeleceu um decreto para a nomeação, e possivelmente essas pessoas não cumpririam esses requisitos”, afirmou France.
Rachadinha
Feito pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o pedido de afastamento dos sigilos bancário e fiscal dos parentes de Ana Cristina Valle — e de outras 86 pessoas e empresas — foi autorizado em 24 de abril. O MP investiga um possível esquema de “rachadinha”, quando assessores são nomeados para repassar parte do salário, ou em sua integralidade, ao político, o que pode configurar lavagem de dinheiro.
Além do afastamento de sigilo de Flávio e de seu ex-assessor Fabrício Queiroz, também serão averiguadas as informações bancárias da mulher de Flávio, Fernanda Bolsonaro, da empresa de ambos, Bolsotini Chocolates e Café Ltda, das duas filhas de Queiroz, Nathalia e Evelyn, e da mulher do ex-assessor, Marcia.
Em dezembro passado, um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) revelou uma movimentação atípica de R$ 1,2 milhão na conta corrente de Queiroz entre janeiro de 2016 e o mesmo mês de 2017. Os sigilos de oito assessores do gabinete de Flávio na Alerj, que transferiram dinheiro para a conta de Queiroz, também foram quebrados por decisão do juiz Flávio Nicolau, do TJRJ.
O MP vai apurar as movimentações financeiras nas contas dos investigados no período que vai de janeiro de 2007 a dezembro de 2018. A quebra do sigilo fiscal compreende o período entre 2008 e 2018. Em sua decisão, Nicolau afirmou que o afastamento dos sigilos é “importante para a instrução do procedimento investigatório criminal” instaurado contra os investigados.
Quem é Ana Cristina
Ana Cristina Valle ficou conhecida no ano passado quando disputou uma vaga na Câmara dos Deputados. Durante a eleição, veio à tona o processo litigioso de separação dela com o presidente, quando ela foi para a Noruega e acusou Bolsonaro de ameaçá-la. Em setembro de 2018, Ana Cristina negou as acusações feitas anteriormente. Ela não conseguiu se eleger pelo PSL do Rio e hoje trabalha na Câmara de Vereadores de Resende.
Revista Época