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O pertencimento pelo reconhecimento: contra a política da vergonha.

Publicado em: 14/11/2012

Por Tatiana Lionço – Precisamos pensar em como a vergonha tem sido usada como instrumento de opressão. Todas as pessoas estão sujeitas ao jugo da vergonha, desde que se interponha entre estas e outras pessoas a distância necessária ao olhar. A vergonha se institui pela atribuição de inadequação segundo a perspectiva de um outro. É o olhar desqualificador que assujeita à vergonha, sendo a vergonha a opressão de ser reduzida/o a não ser, ou à não adequação ao que se deveria supostamente ser.

 

Todas as pessoas desejam o pertencimento. Mesmo aquelas que têm nas margens um espaço de livre escolha, não tendo sido necessariamente excluídas à revelia, mesmo estas pessoas marginais desejam pertencer à posição compartilhada de resistência a uma dada ordem estabelecida. O pertencimento é uma condição humana ideal já que estamos inevitavelmente submetidos ao laço social. Existindo em comunidade, o ideal é que nós humanos nos sintamos pertencentes à condição comum.

 

A exclusão decorre do não reconhecimento de alguém como pessoa com quem se poderia compartilhar vida em comum. O não reconhecimento, que pode beirar a desumanização e a expressa intenção de aniquilamento, decorre da pretensão de que, para que pudéssemos compartilhar humanidade, precisaríamos nos assemelhar. A diferença aí é reduzida à negação do outro, e não à constatação de sua distinção. É assim que se recusa o casamento civil igualitário para casais do mesmo sexo, alegando-se imoralidade. Quando muito, se disfarça a atribuição da desvalor pelo argumento da não natureza. É também assim que se exterminam travestis, que corromperiam a ordem moral da sociedade.

 

Em uma democracia o ideal ético da igualdade requer o reconhecimento de que todas as pessoas, por mais que vivam em condições desiguais e mesmo inconciliáveis do ponto de vista moral ou da noção de boa vida, se encontram em um patamar de base que é o da equivalência no direito de ser, de existir e de gozar de outros direitos humanos e sociais, como a vida, a dignidade e a liberdade mas também o lazer, a família e a cultura, entre outros.

 

Na filosofia política contemporânea a liberdade de consciência tem sido frequentemente evocada como direito fundamental e associado ao direito à dignidade da pessoa humana. A liberdade de crença ou mesmo da religiosidade é um princípio fundamental que garante que pessoas em situações distintas possam em equivalência expressar suas convicções sobre a boa vida e sobre a ideia de justiça. A liberdade de consciência, em um sentido amplo, diz respeito à pluralidade da vida humana e à garantia do reconhecimento da humanidade para diferentes grupos que se distinguem culturalmente, historicamente, religiosamente e moralmente.

 

Martha Nussbaum nos esclarece que, há cerca de quatro séculos, na passagem da teocracia para o regime dos Estados seculares, a liberdade de consciência emerge na retórica do direito e das doutrinas do justo como uma ideia fundamental ao projeto democrático de construção de parâmetros de convivência pacífica. A paz civil entre pessoas que discordam em seus princípios de consciência é um desafio ético que se adensou com o abandono da teocracia.

 

A filósofa nos esclarece ainda que duas correntes majoritárias se estruturaram historicamente na missão de estabelecermos leis e regulação social. Uma corrente pretende que se busquem meios de se conviver pacificamente mesmo com aqueles que sejam acreditados como estando moralmente em erro, por meio do respeito ou reconhecimento da sua condição de igual pertencimento à coletividade, mesmo que difiram radicalmente em seus modo de vida e princípios de consciência. Outra corrente prega que a coletividade não pode ser corrompida por aqueles dissidentes morais, desqualificados como hereges, falhas humanas a serem corrigidas ou mesmo desumanizados na figura do demônio, sendo a ideia de regulação social próxima da necessidade de defender a sociedade contra a degradação por meio da recusa do reconhecimento de determinadas formas de viver e de crer.

 

A intolerância religiosa é uma afronta à liberdade de consciência. A lei que visa a paz civil deve assegurar a equivalência na dignidade a todas as comunidades morais, ainda que certos grupos sejam minoritários. Somos seres sociais e a alteridade é irredutível na condição humana. O outro pode ser reconhecido em sua diferença radical ou pode ser recusado e anulado como ilegítimo em sua distinção.

 

A vergonha tem sido evocada no cenário político brasileiro como instrumento de negação de direitos. Determinados grupos políticos, notadamente os fundamentalistas religiosos e fundamentalistas do capitalismo elitista branco, heterossexual e patriarcal, tem acusado certos grupos sociais tais como os homossexuais e os religiosos de matriz africana de imorais, humanamente inferiores, quando não de degradação humana, chegando a lhes atribuir o qualificativo da satanização.

 

O projeto político que se realiza assim é o da violação do direito mais básico que é o direito ao pertencimento à humanidade compartilhada. O que nós precisamos é de uma proposta de justiça que leve em consideração todas as pessoas, que não destitua de direitos mesmo aquelas pessoas que determinado grupo possa acreditar estarem vivendo em erro moral. As putas, as bichas, as pomba-giras. Os preto-velhos e as mães de santo.

 

Se eu posso também lançar o meu olhar sobre estas pessoas que pregam a desumanização, sobre estas pessoas que me atribuíram inclusive pessoalmente o desvalor da puta demonizada e pervertida, eu diria que espero ainda que venham elas mesmas, um dia, quem sabe agora mesmo, a sentir pudor ao enunciarem um projeto político onde o justo alcança apenas a elas próprias em detrimento de todas as demais pessoas com as quais se compartilharia, no mínimo, o status de civilidade. Cidadania não é para a maioria, é para todas as pessoas, liberdade de consciência não é privilégio, é princípio ético fundamental à convivência pacífica em uma sociedade plural.

 

Precisamos lutar pelo bom uso da palavra. Sabendo que o consenso moral muitas vezes é inviável, dada a diversidade de modos de vida e mesmo de princípios morais, sejam estes religiosos ou não, devemos decidir e exigir que se use bem as palavras para que, ao invés de injúrias e alegações de imoralidade e desumanização, possamos enunciar ideias éticas que proponham a paz civil entre os grupos em sua distinção. A vergonha não deve ser um argumento político em uma democracia. A vergonha pública é tão somente um sintoma, é a expressão sem pudor da legitimação da violência que nos choca no cotidiano da intolerância consentida.

 

*Tatiana Lionço é ativista feminista, doutora em Psicologia e professora de graduação e mestrado em Psicologia no Centro Universitário de Brasília – UniCEUB

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