Por Tatiana Lionço – Já dizia Freud que aquilo que é forçosamente barrado pelo recalque, suprimido da consciência, retorna sintomaticamente. Lacan também afirmava que o que é foracluído – ejetado para fora do domínio simbólico da produção de sentido compartilhável – retorna no real.
Estamos farto/as de escutar que não há racismo étnico ou por cor da pele, que não há homofobia. Os que afirmam tais absurdos são justamente aqueles comprometidos com a manutenção das estruturas de poder e de domínio de grupos privilegiados sobre grupos vulneráveis às violações de direitos fundamentais. Afirmam que defensores de cotas raciais são racistas, que homossexuais carregam o ódio e se agridem mutuamente. Afirmam que índios querem privilégios na posse de terras da União. Impõem, reiteradamente, o silenciamento forçado da revolta contra processos de opressão que grupos ousam enunciar para uma coletividade surda. Brasileiro/as se gabam da identidade nacional, reduzida à novela televisiva que solapa toda a potencialidade de ressonância de falas que caem no vazio. Esperam ansiosamente pelo futebol.
Estamos sendo atacado/as. Nós, defensore/as de direitos humanos e da democracia laica estamos sendo atacado/as moralmente, agredido/as simbolicamente. Estamos ferido/as, estamos sangrando, estamos à beira da morte, real ou simbólica. Os Guarani Kaiowá alertaram recentemente que a sua fé é inabalável, querem ser enterrados em seu território sagrado e se decretam já dizimados e exterminados pela colonização que nunca cessou. Denunciam a omissão senão conivência do Estado com processos de opressão e genocídio étnico. O/as heterossexuais são difamados ou agredidos por demonstrarem afeto entre pai e filho, por discutirem com o poder público suas pesquisas sobre desigualdade sexual e de gênero. Enquanto isso, homossexuais são concretamente esfaqueado/as por demonstrarem desejo em público ou por coabitarem. O ano do apocalipse ainda nem terminou, e já se foram 85 travestis assassinadas apenas em 2012. Na TV, quando muito, assistimos pasmos que o Brasil é um país gay friendly. Recentemente nos chegou a notícia de que os negros são barrados na sessão de eleição do primeiro presidente negro da Suprema Corte do país. Não aqueles negros representados como presidiários no noticiário da TV, mas negros que seguem a carreira diplomática e representam o país mundo afora.
Todos estes episódios são o retorno do recalcado pelo Estado brasileiro e pela opinião pública. Acreditaram que bastaria dar um papel de protagonismo a uma atriz negra em uma novela da TV, acreditaram que índio é coisa do passado, já que sequer estão representados nos enredos televisivos de entretenimento, legitimaram a ideia de que quem luta por justiça sexual é depravado, imoral, esdrúxulo. Legitimaram pelo silêncio e pela cegueira, pela falta de atenção. O Estado decide unilateralmente engavetar projetos construídos democraticamente com a população LGBT politicamente organizada, decide que negros jovens nunca poderiam ser diplomatas e que estariam tentando entrar na suprema corte pela estratégia da falsidade ideológica. É também o Estado que negou aos Guarani Kaiowá o direito a cultuar seus antepassados e a proteger aquilo que deveria nos orgulhar enquanto identidade nacional de supostamente podermos, sim, utopicamente, ser o pulmão do mundo, ao invés do quintal do capital.
Pois saibam que não adianta barrar forçosamente estes traumas. O que foi recalcado, o que foi foracluído, retorna, e com a força avassaladora daquilo que é estranho e ao mesmo tempo tão familiar. Nós, brasileiro/as, estranho/as ao Poder público, estranho/as à opinião pública, estranhamente familiares à nossa história de séculos de opressão, colonização e violência.
Nós não seremos facilmente silenciado/as, pois a cada recusa, a cada negação, a cada abolição simbólica, nós retornamos como chaga aberta. Estes traumas serão reeditados, ainda muitas vezes, até que o Brasil elabore sua história, até que o Brasil assuma como sua a Carta Magna que regada a sangue foi erguida neste país pela força da insistência na denúncia das violações e pelo sonho de uma nação livre e justa.
*Tatiana Lionço é Membro-fundadora da cia Revolucionária Triângulo Rosa, Doutora em Psicologia, Professora de graduação e mestrado em Psicologia no Centro Universitário de Brasília – UniCEUB