Por Sergio Maggio
“Podia não existir a morte. Quando a idade veio chegando, eu só tinha medo de uma coisa: de o boi acabar. Agora, meu filho mais moço assumiu a festa. Quero mais. Mas se não der, estou pronto para fazer a viagem” |
Enquanto o mestre Teodoro Freire viveu, alimentou sonhos. O de chegar aos 100 anos tomando café da manhã com farinha d’água e comendo, no almoço, o sagrado cozido de boi com quiabo e maxixe. Queria também erguer uma nova sede para o Centro de Tradições Populares em Sobradinho a fim de ampliar os projetos culturais. Desejava voltar a pescar no iguarapé do povoado de Castanho Claro e levar “o bicho” ainda se debatendo para a companheira Maria José pôr no fogo. Aos 91 anos, o maranhense, com porte de príncipe, era um amante das pequenas felicidades, como a de se deitar à rede e esticar o corpo cansado de brincante num lugar onde o tempo vadeia. Ali, do mundo, faria questão de saber das narrativas futebolísticas do Flamengo ou das façanhas carnavalescas da Mangueira. Queria mesmo era espichar a vida. “A morte só me procura porque é saliente, não tem vergonha. Eu nunca procurei por ela, de jeito nenhum”, contou, certa vez, ao Correio.
Na madrugada do domingo (15), a “Caetana”, como os nordestinos cabras da peste docemente chamam a tinhosa morte, beijou a boca do homem de coração cheio de paixões. Uma parada cardíaca interrompeu a trajetória do senhor das tradições, que fez o brasiliense ganhar intimidade com a festança do boi do Maranhão e do tambor de crioula, tornando-se a figura mais importante do Distrito Federal no âmbito da cultura popular. Desde ontem, amigos, parentes e admiradores de seu Teodoro participam dos ritos fúnebres no Centro de Tradições Populares,. O velório segue até as 11h. Às 14h, o corpo será cremado.
Dono de múltiplos saberes populares, seu Teodoro fez-se mestre na labuta para matar a saudade doída do Maranhão distante. Foi condecorado pelas honras dos homens letrados. Tinha título da Ordem do Mérito Cultural, outorgado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na gestão de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura, em 2006. A brincadeira de Sobradinho foi tombada como patrimônio imaterial do DF e passou a ser conhecida em todo o país. O respeito e a reverência uniram gerações em torno desse rei popular. Não só os nove filhos vivos abraçaram a tradição (o caçula Guarapiranga é o herdeiro condutor das festas e dos projetos), como também uma legião de jovens encantada com o desejo incontrolável da mulata Catirina em comer a língua do boi.
Em agosto de 2011, com a ajuda de respirador artificial, seu Teodoro encheu os olhos de emoção ao ver a força da farra do boi, criada em Sobradinho há 48 anos. Sentou-se, como um soberano, em camarote todo enfeitado com motivos da brincadeira. Do terreiro, avistava-se aquele senhor de impecável chapéu de palha, adornado por fitas vermelha e preta. Mesmo doente, exibia a fisionomia terna. Há três anos, ele estava guerreando com o efisema pulmonar. Mas, ali, diante dos bois vindos de todo o país e daquela gente de muitos cantos do DF, parecia esbanjar saúde. “A festa cresceu muito, graças à resistência dele. Uma hora o reconhecimento chega”, comemorou Guarapiranga.
A resistência de Seu Teodoro se fortaleceu em décadas de dedicação para preservar as tradições de sua terra natal. Primeiro, no Rio de Janeiro, quando chegou em 1953, e foi ganhar a vida na então capital federal do Brasil, trabalhando como faxineiro. Ali, num misto de deslumbre com a cidade grande e o banzo do Maranhão, teve o impulso de formar um grupo de brincantes para reviver as danças e as cantigas que se mantinham vivas em sua memória de menino. Juntou uns 46 cabras e botou o boi para correr a capital fluminense. Numa dessas rodas, o brincante se desmanchou feito bobo quando viu a menina Maria José dançando ao som das matracas e das zabumbas. Foi amor de olho no olho. Ela, mulher de uma vida inteira, teve 11 filhos (nove estão vivos). “Teodoro sempre foi um homem apaixonado”, suspirou a companheira de 56 anos.
Tatus e siriemas
Brasília só tinha um ano de vida quando o escritor maranhense Ferreira Gullar (então diretor da Fundação Cultural no governo Jânio Quadros) fez um convite para que aqueles brincantes nordestinos das ruas cariocas viessem à nova capital festejar a “maluquice” de JK de transferir a sede do poder para o meio do mato de Goiás. Teodoro, o boi e todos os fantásticos seres bailaram na Rodoviária. “Brasília era diferente. Tinha tatu na estrada, siriema andando na rua, deu vontade de ficar”, lembra o homem de memória prodigiosa (ele morreu lúcido e tendo os lapsos naturais da velhice). No ano seguinte, 1962, Teodoro e família desembarcavam aqui de mala e cuia. É lógico que ele não descansou enquanto não pôs o boi no concreto.
Enquanto instalava-se em Sobradinho com a família e as tradições (ele fundou a Sociedade Brasiliense de Folclore em 1963), iniciava carreira de funcionário público na Universidade de Brasília (UnB). Começou como contínuo e se aposentou já com um certo respeito pelos seus saberes, confeccionando instrumentos. O templo do mestre, o Centro de Tradições Populares (criado em 1972), em Sobradinho, virou abrigo para as manifestações culturais que ganharam identidade no DF. Hoje, a festa é tão candanga quanto maranhense com brincantes nascidos e criados aqui. “Não reclamo de nada. Alguém como eu ter todas essas honras em Brasília, quem diria?” A simplicidade era uma das suas maiores sabedorias e um dos nossos maiores aprendizados.
» Doidinho pelo boi
A loucura de Seu Teodoro pelo boi começou lá em Castanho Claro, povoado do município de São Vicente de Férrea, localizado a 280km de São Luís, na chamada Baixada Ocidental Maranhense. Um lugar de gente modesta, com menos de 20 mil habitantes (segundo o Censo de 2007), que vive de lavoura, de pastar gado e de aposentadorias. “Ver o boi era a única diversão. Mas na festa dava briga. Eu era menino e minha mãe não deixava eu assistir. Então, eu fugia de casa meia-noite”, lembrou. Para enganar dona Sinhá, ele colocava um pilão dentro da rede. Ela passava e pensava que o garoto dormia de sono solto. O menino Teodoro não era chegado aos estudos. Queria mesmo era entender a natureza daquele teatro de rua. Quando se mudou ainda menino para São Luis, trabalhou em botequim e quitanda. “Fiz de tudo na vida. Macetei pilão, trabalhei em oficina. Não sobrou tempo. Queria ter sido militar”, lembra o homem doido pelo Maranhão, a ponto de batizar um dos filhos como Tauá, em homenagem a uma ilha do estado natal.
Colaboraram Leilane Menezes e Pedro Brandt
Publicado originalmente em Cricri em Cena