Por Frederico Salles: Cobrir o rosto, como as muçulmanas, nunca foi preciso, desde os tempos coloniais. A propriedade do corpo, requisito básico para a libertação da mulher, filosofia dos primórdios feministas, teve de ser conquistada ao longo de anos, por meio de uma guerra silenciosa que se iniciou pela exibição de certas partes nunca antes permitidas, salvo antes do descobrimento, quando ao sol era dado o privilégio de banhar toda a superfície, inclusive as vergonhas, tão altas, tão cerradinhas, tão limpas das cabeleiras e tão graciosas, que levaram Caminha ao deslumbramento, a ponto de descrevê-las assim a El Rei D. Manuel, admitindo que as muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como elas.
A concepção do macho-alfa ainda não fora cogitada como elemento partícipe do comportamento humano, conceito que somente mais tarde seria pinçado da Biologia por psicólogos modernos, inspirados nessa peculiaridade das demais espécies. Recentemente, Dan Kindlon detectou o mesmo fenômeno na sociedade contemporânea, em relação ao sexo feminino, que ele definiu como mulher-alfa, em seu livro Alfa Girls. É a mulher talhada para a liderança, competente em qualquer universo em que se insira, que não têm dúvida de seu potencial intelectual, sem afastar-se da feminilidade, da vaidade e do trato da beleza. Poder-se-ia defini-la como mulher livre, ou liberta. A mulher que, livre do milenar jugo masculino, se encaminha para a conquista da hegemonia universal.
O período que medeia entre o estado de escrava e o de ser dona do próprio ser, ainda distante do alfa, foi longo e tenebroso. A conquista só foi possível graças à pertinácia feminina desde tempos imemoriais.
Tímida e pacientemente a brasileira interiorana vestiu também o uniforme e foi à luta, ensaiando os primeiros passos daquela exibição, instigando a inveja de companheiras mais pudicas ou a libido de cavalheiros ainda pasmos! Primeiro as panturrilhas, depois os joelhos, nesse exercício que se fez de baixo para cima e no sentido inverso, quase simultaneamente. Há meio século os seios aderiram ao exibicionismo dissimulado e insinuante.
Retrocedei, caro leitor, esse interrégno, no túnel do tempo, e situai-vos em Cornélio Procópio, cidadezinha do interior do Paraná, localizada a 400 km ao norte de Curitiba, com uma população urbana de pouco mais de 10.000 habitantes. Nascida de pequeno povoado embrionário do quilômetro 125, da Rodovia Rondon Pacheco, Cornélio só se tornaria cidade em 1938, graças à inauguração da passarela das marias-fumaças, ferrovia construída em 1930, nos estertores do governo Washington Luiz.
A terra roxa fez da região um novo far west do ouro negro, atraindo agricultores, aventureiros e interesseiros de todas as paragens, do matuto ao ricaço, do brasileiro ao gringo, de índoles boas ou más, inclusive o Príncipe de Gales, acionista-mor da Paraná Plantations, antes de abdicar o trono da Inglaterra, como Rei Eduardo VIII, e de ser reduzido a duque de Windsor, em 1936, para casar-se com Wallis Simpson, uma americana divorciada e esperta.
A vida ali quase beirava o medieval, estruturada por poderosos coronéis machistas, entre os quais o que lhe deu nome, homenagem do zeloso genro Francisco da Cunha Junqueira, casado com uma de suas filhas.
Os decotes, caprichosa e maliciosamente recortados em forma de coração, permitiam ver-se tudo que os jovens almejavam – o extremo inferior da linha de união entre os seios. Modeladas por educação patriarcal sisuda, as moças procopenses usavam de subterfúgios para ter esse prazer nas festas da cidade. Eram fichus que desciam até os ombros dissimulando a exibição pretendida. Algumas, aproveitando-se da aquiescência materna, benóvola e flexível, nem os levavam até os salões, descartando-os pelas janelas de quartos propositadamente abertas por mães compreensivas, depois de livres do temido ângulo da visão patriarcal.
Voltemos à primitiva Cornélio. Final dos preparativos de uma festa dominical a iniciar-se às 18 horas, percebeis? Sim, porque as moças deveriam retornar às suas casas às 22. Apesar da pacatez, moçoilas bem vestidas circulam pela rua que conduz à praça principal, em descontraída algazarra adolescente. Adentreis no salão; ambiente sóbrio e recatado, mesas cuidadosamente adornadas com ramalhetes. Observai que não há luzes coloridas, holofotes cintilantes, decibéis ensurdecedores. A orquestra típica permite aos convivas aquele prazer de jogar conversa fora em voz baixa. Clarineta, saxofone, contrabaixo, pistom, pandeiro, violão, banjo, cavaquinho, ganzá. Reconheceis o cantor? Carlos Galhardo? Não, Orlando Silva! Mas em breve ouvireis Gregório Barrios, Lucho Galica, Tona la Negra, com seus boleros românticos, convidativos, aconchegantes. Estará no cardápio, com certeza, “Besame mucho”, como si fuera esta noche la última vez, na voz inebriante de Barrios ou Galica.
Foi naquele ambiente que Cupido decidiu transfigurar-se. Elvira, moçoila baixota, rechonchuda, consciente de que seus parcos dotes físicos seriam incapazes de atrair a atenção masculina, conformava-se em observar confinada a sua mesa, a suspirar solitária, à espera de um cavalheiro imaginário, enquanto as companheiras valsavam no salão. Alguém, entretanto, como num conto de fadas, a surpreendeu postando-se de pé, a sua frente. Desconfiou que não era o alvo de tão extremada mesura, mas acabou convencendo-se do contrário, ao constatar que não havia ninguém na mesa a suas costas. Era Everaldo, curvando-se, cavalheirescamente, num gesto denunciador de educação refinada, o antebraço esquerdo encostado à cintura, horizontalmente, enquanto o direito descrevia um semi-círculo leve e gracioso no espaço, no sentido fronte-ventre, acompanhando o movimento antero-inferior do tronco, finalizado em ângulo próximo do reto .
Elvira estremeceu, num sorriso nunca antes esboçado, e o par volteou pelo salão, enlevado pelos acordes de uma valsa. Mas o que todos aguardavam, ansiosos, era o bolero, dança sensual, apropriada para arrochos mais ousados, galanteios, sussurros ao pé do ouvido. Gregório Barrios se encarregaria da atmosfera.
Todavia, a estatura avantajada do Everaldo, quase o dobro da de Elvira, privou-lhe da posição mais gostosa da esperada dança – o rosto colado. Inebriado pelo contato volumoso do busto rijo da donzela a massagear-lhe o abdome, não teve outra alternativa para aquele sussurro, senão o galanteio à distância. Não resistiu muito tempo; ao curvar-se, para melhor equidistar boca e ouvido, traiu-se num sorriso largo de satisfação. Nesse primeiro exercício, a dentadura escorregou e foi agasalhar-se, discreta ou indiscretamente, entre os seios arfantes de Elvira. Lívido, trêmulo, constrangido, tenta ocultar a boca murcha e alçar logo o sorriso fugidio para devolvê-lo aonde deveria estar. Mas como? Ser flagrado no salão insinuando a mão entre os seios de uma senhorita trar-lhe-ia conseqüências desastrosas. Ruborizada, respiração entrecortada, Elvira ensaia desprender-se dos braços de Everaldo e empreender fuga rápida para livrar-se da situação constrangedora e do artefato a mordiscar-lhe o mamilo. Pior ainda. A fuga seria mais constrangedora ou comprometedora. E o par?! Pensou melhor; perdê-lo era hipótese fora de cogitação. Devolver rápido o sorriso do cavalheiro seria mais apropriado, fossem quais fossem os caminhos para a devolução. O dilema levou-a a vencer a sensação de asco que, de início, retardara a segunda hipótese, enfim vitoriosa. Poucos perceberam aquele momento fugaz, mas o suficiente para que a cidade toda se inteirasse dele, no dia seguinte. O episódio, porém, longe de afastá-los, contribuiu para tecer uma auréola de intimidade que os levaria ao altar, pouco tempo depois.
* Baseado em relato de uma paciente e amiga, advogada procopense (colega da
personagem que chamei de Elvira) que viveu pessoalmente essa história e me
forneceu para enriquecer minha série de casos, intitulada “Dentaduras e Próteses”.
Dr. Frederico Salles: "das margens do Subaé ao Palácio
da Alvoradoda (como visitante, naturalmente)"