“O povo desarmado merece o respeito das Forças Armadas”. Foi este um dos ensinamentos que o Juiz de Direito Bento Moreira Lima deixou em carta para o filho, que havia acabado de ingressar na Escola Militar de Realengo (em 1939). Gozando de invejável lucidez aos 92 anos, o Major-Brigadeiro Rui Moreira Lima, que é um dos únicos pilotos veteranos da 2ª Guerra Mundial ainda vivos, abriu as portas de sua casa (em dois dias diferentes) para o “Quem tem medo da democracia?”. Para contar como a carta de seu pai o norteou por toda vida, levando-o a não aderir a golpes.
Por Ana Helena Tavares(*)
“Vargas governava cercado por nazistas”, lembrou Moreira Lima. Mas, diferentemente das ditaduras que reprimem e punem aqueles que são contrários a ela, na guerra – que, como garantiu o Major-Brigadeiro-do-Ar, “começou pelo mar” – os cadetes tinham liberdade de expressão: “Nós podíamos dizer se torcíamos pelos aliados ou pelos alemães”, frisou.
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Sobre sua experiência na Itália, ele é autor de 2 livros – “Senta a pua!”, que já está na 3ª edição e traduzido para o inglês e “O diário de guerra”. Senta a pua! era uma ordem de abate, algo como: “Manda ver!”. Mas o homem que cumpriu 94 missões de guerra, sempre almejou a paz e, por conta disso, andou na contramão da ditadura, sendo colocado na reserva logo após o golpe de 64. E até hoje não foi anistiado pelo Estado. Tudo o que conseguiu foi na justiça comum. Pelo que reza a Constituição de 88, ele já teria a patente mais alta da Aeronáutica em tempos de paz, que é a de Tenente-Brigadeiro-do-Ar. Uma 4ª estrela no ombro, pela qual ainda luta. “Não pelo dinheiro, pois a diferença não é grande, mas por justiça”.
No início da década de 60, Rui Moreira Lima era responsável por organizar Conferências para cadetes. Em uma delas, foram explicados os motivos que levaram à construção de Brasília. “O Brasil estava à beira-mar, de costas para a terra, então a idéia era trazer o Brasil para o centro. Ainda se discute muito se foi bom ou ruim. Eu acho que foi ótimo, porque hoje o Brasil está integrado”, opina. Outra das Conferências (a 1ª), contou com a presença de D. Hélder Câmara. “Tem muita gente que engole a hóstia e nem sabe por que está engolindo a hóstia… Mas ele (D. Hélder) sabia tudo de costas”, elogia Moreira Lima, que pediu ao então padre que explicasse aos jovens militares o porquê da hóstia, o porquê da Páscoa, etc… Depois, ainda convidou um conferencista para ministrar-lhes uma palestra sobre o que é democracia e o que é ditadura.
“O livro do Estado Maior (regimento das Forças Armadas) dizia que o Comandante podia promover conferências de esclarecimento aos seus comandados”, garante Moreira Lima. Porém, ao que parece, o alto comando não gostou dos esclarecimentos. Na conferência sobre democracia e ditadura, um sargento fez uma pergunta sobre Reforma Agrária. Moreira Lima permitiu que o conferencista (que era um coronel) respondesse. “Ele não falou nada demais. Falou que é importante o governo dar ensino e mantimentos… E disse que o que o sujeito (agricultor) produzir é dele.” Em seguida, Moreira Lima ainda organizou uma conferência específica sobre Reforma Agrária. O conferencista fez uma crítica ao Congresso e “esse foi o ponto-chave”, analisa o Major-Brigadeiro, referindo-se aos motivos que o levaram a ser afastado da ativa. “Ao me impedirem de voar, tiraram a minha paixão”, lamenta-se.
“Quando veio a chamada ‘revolução’, que foi o golpe de 1º de Abril, eu estava em Santa Cruz. Eu era um oficial novo. Era Tenente-Coronel. E me convidaram para ser comandante da base. Enquanto isso, dois companheiros meus me telefonaram dizendo: ‘Rui, você não está sabendo o que está acontecendo, está uma loucura. Os majores estão tomando conta disso e ninguém mais está obedecendo a ordens. ’ Eu respondi da maneira como meu pai me ensinou (pela hierarquia): fui tenente, capitão , major, tenente-coronel e coronel desta unidade, agora vou comandar.”
Rui Moreira Lima foi, então, alertado que outro militar – Lafayette –, com o mesmo pensamento legalista dele, já havia tentado comandar Santa Cruz e havia sido reformado. Moreira Lima tentou. “Não vai ter problema comigo não”, pensou. “Houve mil problemas, mas batalhei antes de haver os problemas.” E frisa que, durante o tempo em que conseguiu comandar a base, só mandou prender dois oficiais, mas “seguindo o regulamento militar e não por questões políticas”.
“Então, o que aconteceu é que, na luta pelo poder, me prenderam. Foi um golpe dentro do golpe”, definiu Moreira Lima, que diz ter orgulho de ter sido o único comandante de base a não ser preso de madrugada, nem em casa. Recebeu voz de prisão por telefone, na base, de madrugada, mas conseguiu passar o comando apenas na manhã seguinte, pois, do contrário, “iria morrer mais gente”. Atitude serena que irritou os militares golpistas: “Passa logo o comando desta merda”, ouviu do ministro militar que o telefonou. No que Moreira Lima respondeu: “O Senhor pode achar que esta base é uma merda, mas para mim não é. Agora, se o senhor disser que eu sou, aí eu fico à vontade e digo que o senhor é outra. O senhor venha aqui amanhã de manhã e faça aquele discurso bonito onde tinha dito que eu era o oficial padrão da FAB”.
Após a troca de comando, Moreira Lima ficou três dias em casa até ser efetivamente preso. “Foi uma violência. Me colocaram no porão do navio de tropa Barroso Pereira, perto da Ilha Fiscal. Quando todos os colegas estavam no Leopoldina, que era um navio de turismo, com ar condicionado, comida boa, banho de sol, etc… Três dias depois de eu ser preso o meu comandante de guerra soube que tinham me colocado num navio diferente e telefonou pro Castelo Branco, que também tinha sido meu companheiro na guerra (ele era general, eu tenente). Aí me mudaram de navio e cumpri 49 dias de prisão. Não havia nada contra mim. Mas, depois disso, passei a ser campeão sul-americano de prisão. ‘Qualquer coisa, prende o Rui!’”. Segundo Moreira Lima, antes do golpe de 64, ele nunca havia sido preso por questões políticas: “Nunca fui indisciplinado, mas não fechava a boca. Sempre disse as coisas com muita verdade. Tem muito puxa-saco por aí…”.
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Como exemplo de militar íntegro, Moreira Lima contou suas lembranças do Marechal Teixeira Lott: “O filho dele chegou a ser meu aluno e meu comandado. Eu conheci o então General Lott quando ele era ministro da guerra. Era um sujeito incorruptível. Mas muito rígido. Foi ele que garantiu a posse do Juscelino (em 1956). E eu o apoiei, porque sabia que, senão, iriam fazer uma ditadura, como fizeram em 64.”
“Eles (UDN) nunca conseguiram chegar ao poder pelo voto. Só tomaram o poder pela força. Não foi um golpe do povo. Muitos civis que apoiaram no início pensaram que retomariam logo o poder, mas os militares não deixaram. O povo estava mal informado e até hoje está. O João Goulart não tinha nenhuma prática de comandar. E o Assis Brasil, que era general dele, também não. Mas todo o Brasil queria as reformas do Jango. Muitas até agora não foram feitas. Hoje, temos aí o agronegócio… E cadê a Agrária?”, pergunta-se Moreira Lima.
Para ele, Leonel Brizola – que, em 1961, quando Jânio Quadros renunciou, era governador do Rio Grande do Sul e garantiu a posse do vice João Goulart na presidência, ao lançar a Cadeia da Legalidade – “foi um exemplo de patriota, um sujeito de uma valentia e de uma coragem fantásticas”.
Sobre as torturas mentais que sofreu, ao ser preso novamente, 6 anos depois do golpe, a quebra de hierarquia militar foi uma das coisas que mais chocou Moreira Lima: “Eu, um coronel, fui preso por um sargento e fiquei três dias num buraco que era chão de barro, sem poder deitar na cama, que era um tripé. Quando eu precisava fazer necessidades fisiológicas, vinha um soldado de 18 anos apontando arma pra mim”. Conta que só não morreu “porque não tiveram tempo pra isso”. Crê ter sido salvo pela repercussão das mortes do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho, as quais forçaram o fim da ditadura.
“E tem essa história de ‘revanche’… Ninguém quer fazer revanche em ninguém!”, assegura. E pede para que as pessoas se imaginem no lugar de uma mãe cujo filho “estava na faculdade e sumiu de casa e foi para o Araguaia”, por exemplo. “Eu já conversei com amigos meus que estiveram lá e me disseram: ‘Rui, lá não tinha quartel nem pra nós nem pra eles.’ Mas a grande questão é que ninguém pode suportar perder o seu filho e não saber onde ele está. O torturador é um infame!”, verbera Moreira Lima com as mãos em punho. “No mundo inteiro, os torturadores são presos independentemente do tempo que se passou depois das torturas”. Mas ele não acredita que isso vá acontecer aqui, embora considere equivocada a decisão do STF de anistiar os torturadores: “É crime contra a humanidade! Esses sujeitos não têm consciência, não têm alma, são covardes! Eu até digo pros meus colegas e eles me dizem: ‘Mas Rui… Você não alivia nada!’ E eu digo que não posso aliviar. Isso é porque vocês não foram cassados, não perderam o direito de voar… O Figueiredo anistiou os torturadores, ‘o lado de lá’, e não anistiou nós militares que lutamos pela democracia. Já em 79 eu deveria ter a patente de Brigadeiro, mas fiquei esperando 17 anos.”
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Além da impunidade, como exemplo de regalias a que tiveram direito os torturadores, Moreira Lima citou o caso de Brilhante Ustra, coronel que foi reformado após o golpe e colocado, através de adido militar, como Cônsul no Uruguai. Lá, ele foi um dia reconhecido pela atriz e então deputada Bete Mendes, que fez um escândalo, dizendo: “O senhor é o “Doutor Tibiriçá”. O senhor me torturou!”. Bete Mendes enviou uma carta ao então presidente José Sarney solicitando que Ustra fosse removido do cargo. Ela ainda pronunciou um discurso no Congresso. O general Lêonidas Pires Gonçalves (que foi colega de turma de Moreira Lima e era ministro do Exército de Sarney), não só manteve Ustra no posto como também avisou que não demitiria nenhum outro militar acusado de tortura. Depois disso, “Ustra ficou num ostracismo tranqüilo”, como definiu Moreira Lima. “E os três Clubes Militares ainda ofereceram um jantar de desagravo a esse cara. Com mais de 700 talheres!”, detalhou.
Ainda assim, o Major-Brigadeiro não vê possibilidade de um novo golpe: “Eu acho que a Dona Dilma não vai perder para esses caras”, disse balançando negativamente a cabeça. Mas acha bom que ela fique atenta: “Naquela época, cansei de avisar… Não façam isso, vai terminar em golpe, esses caras vão colocar o Jango pra fora.”
Em plena democracia, ele conta que ganhou um livro com uma biografia de Lula, autografado por ele, e colegas se sentiram incomodados. Quanto à recém instalada “Comissão da Verdade”, Moreira Lima acha “correto” que se apure de 1946 a 1988, mas vê “pressão dos golpistas”. E alerta que ainda hoje é “muito forte o medo que os civis têm dos militares. E estão cheios de razão, já que as Escolas Militares continuam chamando o que aconteceu em 64 de revolução. Não foi”, garante.
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Ele considera que “a mídia não cumpre o papel de bem informar sobre a ditadura. Não se conta a história!”. Mas pondera que “devido ao jogo de interesses, esse papel não é cumprido satisfatoriamente em lugar nenhum do mundo”. Deveria se chamar “mírdia”, alfineta.
“Mas é preciso que se saiba tudo. Se você coloca uma rolha num tanque, uma hora a pressão da água vai empurrá-la, procurando a verdade. Aí, até a rolha vai querer estar na superfície para ver melhor o que está acontecendo e dizer para a água ‘não faz isso comigo, poxa!’”, metaforiza Moreira Lima.
Sobre a atuação de Dilma, ele vê de forma positiva. Crê que ela está “empenhada” em “destampar a rolha”: “Acho que ela está mergulhada de cabeça nisso. Só que há um sistema em volta dela que não a permite fazer tudo o que quer. Eu tenho uma vontade de falar com ela!”, exclama.
Clique aqui e assista a Moreira Lima falando sobre a “mírdia” e a atuação de Dilma
E conclui respondendo à pergunta-título deste site: “Olha, como eu não tenho medo da democracia, como eu amo a democracia, acho que só quem está devendo muito, com a consciência muito pesada, porque já praticou atos antidemocráticos – principalmente os que exerceram ditaduras, e foram discriminatórios em suas atitudes, matando e torturando – estes têm medo da democracia. Tenho certeza que têm”.
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=> Trechos desta entrevista foram lidos no plenário da Câmara, em Brasília, pelo deputado Amauri Teixeira (PT-BA). Clique aqui para ouví-lo.
=> O site “Forças Terrestres”, mantido por militares, divulgou esta entrevista, o que pode ser considerado um bom sinal de oxigenação nas Forças Armadas. Clique aqui para conferir.
=> Esta entrevista é a continuação de uma série sobre a ditadura. Para conferir as anteriores, clique aqui.
*Ana Helena Tavares é editora do site “Quem tem medo da democracia”
Publicado no Câmara em Pauta com a autorização da jornalista Ana Helena Tavares