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Chomsky: Protestos em Cuba não pedem derrubada de regime e intervenção estrangeira

Publicado em: 21/07/2021

De BostonAté o início deste ano, Cuba estava nas manchetes internacionais como um país modelo que se moveu rapidamente para enfrentar a ameaça emergente da COVID-19. A nação cubana foi uma das primeiras latino-americanas a desenvolver e fabricar sua vacina própria contra o coronavírus e adotar um tratamento eficaz para as vítimas, inclusive as que necessitavam ser hospitalizadas. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva inclusive foi uma das pessoas que testaram positivo quando esteve em Cuba, no mês de janeiro, gravando o documentário dirigido por Oliver Stone. Ele não precisou ser hospitalizado, mas é uma das testemunhas sobre o tratamento de excelência contra COVID-19 que recebeu no país cubano.

Agora a situação mudou e está periclitante. Entre maio e julho, a curva de pessoas infectadas pelo vírus atingiu uma faixa alarmante (dados da JHU CSSE COVID-19). Faltam vacinas. Este mês, a ilha explodiu em uma onda ampliada de protestos econômicos e sanitários. Além da necessidade de matérias-primas externas vitais para a produção de vacinas, a nação precisa de outros componentes para combater a COVID-19. Mas o embargo / bloqueio econômico dos EUA a Cuba torna difícil o país adquirir esses e muitos outros bens.

Nesta entrevista exclusiva à jornalista Ana Alakija, Aviva Chomsky, professora de História e coordenadora de Estudos Latino-Americanos da Salem State University, Massachusetts, também uma especialista em estudos cubanos, esclarece que interpretar os protestos em Cuba como cobrança pela mudança do regime e intervenção estrangeira é um equívoco––uma visão invisível na mídia supremacista norte-americana. Para ela, o governo Biden deveria interromper sua campanha de tentar derrubar o regime político de Cuba e parar de sabotar o país que há seis décadas enfrenta o imperialismo e o gigante americano. Outro equívoco trazido à luz por professora Chomsky, é a imagem que a mídia dominante propala sobre Cuba como um país comunista de economia fechada. “Cuba hoje tem uma economia mista, como muitos outros países, onde coexistem a propriedade pública e a privada.” Por Ana Alakija

 

Ativa na solidariedade latino-americana e nas questões dos direitos dos imigrantes nos EUA por mais de trinta anos, Aviva Chomsky interrompe a sua agenda cheia mesmo durante o verão  (dificil acessar acadêmicos aqui nos EUA nessa época do ano) para nos dar essa entrevista.   Ela fala de Cuba, especialmente sobre os protestos de rua jamais vistos em seis décadas após a revolução de 1959 e que estão sendo interpretados equivocadamente. Chomsky procura desconstruir a imagem que a grande mídia cria e demoniza sobre a ilha do Caribe, fomentando o seu isolamento.” Quando o presidente Biden estava em campanha, ele prometeu retornar às políticas da era Obama––extremamente populares em Cuba––de reconhecimento político e aceitação do direito de Cuba de determinar seu próprio futuro”, diz ela. “Mas desde que assumiu o cargo, Biden, em vez disso, continuou a reversão da era Trump de todas as aberturas políticas de Obama.” Esse, na opinião dela, é o X da questão.

Professor Chomsky fala ainda sobre raça, classe e gênero  em Cuba e sobre as gerações de  cubanos que migraram para os EUA. Ela expande a sua leitura e renderiza sobre os movimentos de libertação da América Latina no final do século 20 e sua influência nos movimentos socialistas do século 21. Eles dão “novos entendimentos sobre a economia global neoliberal surgida na década de 1990 e a crise ambiental global”. A exemplo do buen vivir ou sumak kawsay, que “olham os movimentos indígenas e camponeses da América Latina como proponentes de um tipo diferente de anti-capitalismo e anti-imperialismo baseado na soberania alimentar e na justiça ambiental e climática ”.

 

Ana Alakija– Você visitou Cuba pela primeira vez nos anos 90. Quando você voltou aos EUA, escreveu A History of the Cuban Revolution (Blackwell 2015 [2010]), que é considerado um dos relatos sócio-históricos mais concisos sobre a Revolução Cubana de 1959, inclusive no Brasil onde o livro circula na língua portuguesa (“História da Revolução Cubana”, Serpente, 2015). O que está acontecendo atualmente em Cuba pode ser interpretado como uma prova de que os cubanos mudaram de ideia e não acreditam mais no sistema comunal? O que realmente mudou em 60 anos desde que a Revolução explodiu naquela nação?

Aviva Chomsky – Visitei Cuba pela primeira vez em 1995, no auge do que é conhecido como “Período Especial”. O colapso da Rússia e do Bloco Socialista no início da década de 1990 causou uma enorme crise econômica em Cuba. Já excluído dos mercados dos Estados Unidos, Cuba perdeu sua principal fonte de ajuda e comércio. Toda a sua economia estava voltada para fornecer açúcar ao bloco socialista por um “preço justo” e receber em troca alimentos processados, manufaturados e petróleo. A perda desse relacionamento deixou a economia em parafuso. Desesperado por divisas estrangeiras, Cuba começou a fazer reformas econômicas dolorosas: investiu no turismo e aceitou investimentos estrangeiros, permitindo que as pessoas comprassem bens importados com dólares americanos, o trabalho autônomo, pequenos negócios e empresas privadas. Embora Cuba tenha mantido alguns setores socializados, como saúde e educação, o que significa que são gratuitos e acessíveis a todos, grande parte da economia foi privatizada, o que trouxe consigo todos os problemas do capitalismo, como desigualdade e falta de acesso. No capitalismo, os ricos consomem muito e os pobres ficam sem. Esse é um dos problemas que a Revolução procurou transformar. Mas a economia global e os Estados Unidos tornaram isso muito difícil. Hoje Cuba tem uma economia mista, como muitos outros países, onde coexistem a propriedade pública e privada.

Ana Alakija- Qual é a raiz do problema? Há uma teoria (e o professor, senhor seu pai, Noam Chomsky compartilha sobre isso postulando-a como “The Reactionary International” como uma estratégia organizada por Trump com sede em Washington) que diz que há um controle geopolítico dos EUA sobre Pequin, Moscou, Cuba, mas também o Oriente Médio, Marrocos, Colômbia, etc., por meio de organismos de segurança americanos. Esse esquema independe de quem seja o presidente da República. Você vê uma conexão entre os protestos cubanos e o que está acontecendo em outras nações latino-americanas (como o recente assassinato do presidente do Haiti envolvendo participação estrangeira, a lenta demolição da democracia no Brasil, a crise na Venezuela, etc, etc) ?? Seriam esses eventos estimulados por este núcleo da Intelligentsia norte-americana fomentando políticas de intervenção externa?

Aviva Chomsky – O que eu vejo em comum nos protestos em Cuba e em outros lugares como a Colômbia é que a combinação de Covid-19 e o colapso econômico que a acompanhou exacerbaram o problema de sobrevivência nos países pobres. Pessoas pobres em países pobres viviam perto do limite da sobrevivência mesmo antes da COVID-19, mas a COVID-19 e o colapso econômico os empurraram para o limite. Em termos de política norte-americana, os EUA deixaram claro desde o final de 1959 que seu objetivo é fazer com que a Revolução Cubana fracassasse. Eles tentaram por meio de invasão, por meio de sabotagem econômica, por meio de embargo e bloqueio, por meio de tentativas de assassinato e por meio de financiamento e manipulação da oposição interna. Os EUA ficam indignados quando pensamos que outros países estão tentando interferir em nossa política interna – mas interferimos abertamente na política interna de outros países, inclusive tentando derrubar seus governos, como temos feito nos últimos 60 anos em Cuba.

Ana Alakija – Por que os cubanos nos EUA (como os sediados em Miami e Washington) estão apoiando esses protestos do governo anticomunista em Cuba? Diferentemente dos protestos brasileiros nos EUA, por exemplo, onde lutam contra um governo fascista atualmente ultraconservador para restaurar a democracia no Brasil …

Aviva Chomsky – Os cubanos nos EUA são um grupo diversificado e nem todos apoiam a extrema direita. Devo esclarecer que os protestos em Cuba não são exatamente “protestos do governo anticomunista” e não têm necessariamente o objetivo de derrubar o governo. As pessoas nas ruas protestavam contra a falta de comida, eletricidade e vacinas. Alguns também pediram mais abertura política. Não ouvi ninguém em Cuba pedindo a derrubada do governo ou uma intervenção estrangeira. Suponho que você e eu participamos de protestos aqui nos EUA. Participar de um protesto não significa necessariamente que você deseja derrubar o governo – significa que você deseja que o governo faça mudanças específicas. Definitivamente existe uma classe política cubana de extrema direita bem organizada e bem financiada, principalmente, mas não exclusivamente em Miami, que se dedica a derrubar o governo de Cuba. Eles são muito expressivos, controlam um grande eleitorado, têm uma voz forte no Congresso e desempenham um grande papel na política da Flórida – e a Flórida é um estado indeciso. Quando o presidente Biden estava fazendo campanha, ele prometeu retornar às políticas da era Obama de reconhecimento político e aceitação do direito de Cuba de determinar seu próprio futuro. As políticas de Obama foram extremamente populares em Cuba. Mas desde que assumiu o cargo, Biden, em vez disso, continuou a reversão da era Trump de todas as aberturas políticas de Obama. O lobby cubano de Miami – que, como eu disse, não representa todos os cubanos nos EUA ou mesmo todos os cubanos em Miami – adota uma postura política de extrema direita. É liderado pela ex-elite governante de Cuba, que fugiu após a revolução e continua a fingir que pode restaurar a Cuba pré-1959.

Ana Alakija – Por quanto tempo você acha que o regime cubano conseguirá sobreviver com o bloqueio dos EUA? À luz da teoria de Heine e Nietzsche resumida em “a história se repete”, e outras teorias, você acredita que esses protestos podem mudar o curso da história de Cuba? Quero dizer: mudar o atual regime de esquerda fechada para uma extrema direita radicalmente atrasada (semelhante aos tempos de Gal. Fulgencio Batista)? Já ocorreu com outras nações latino-americanas que viram suas democracias desmanteladas, como o Brasil. Até mesmo os EUA deram uma guinada para a direita, quando um grande número de eleitores não votou nas eleições presidenciais e Trump foi eleito presidente no passado recente.

Aviva Chomsky– É muito difícil prever o futuro. Mas a Revolução Cubana sobreviveu ao bloqueio por muitas décadas, e acho que é claro que o bloqueio não conseguiu fazer a Revolução entrar em colapso. Definitivamente, contribuiu para tornar a vida cotidiana muito mais difícil para os cubanos comuns, e deve ser eliminado. Cuba mudou MUITO nos 60 anos da Revolução. Neste momento, as mudanças estão indo no sentido de reduzir o setor estatal da economia e aumentar o setor privado. Essa tem sido a direção desde o início dos anos 1990 – ou seja, nos últimos 30 anos. Mas, eu sou uma historiadora, então sou melhor em analisar o passado do que em prever o futuro!

Ana Alakija – Tem uma luz no fim do túnel? Como a comunidade internacional pode colaborar com Cuba na perspectiva de uma solução? O que é mais importante no momento em termos de ajuda? Aviva Chomsky – A comunidade internacional condena veementemente o embargo / bloqueio dos EUA – todos os anos é denunciado de forma contundente nas ONU, mais recentemente com apenas um país se juntando aos EUA na oposição à resolução que condena o bloqueio [Israel; Brasil surpreendentemente votou pela abstenção]. Mas dado o poder econômico dos EUA no mundo, é muito difícil para outros países realmente desafiá-lo na prática, porque eles não querem enfrentar as punições que os EUA impõem àqueles que o violam. Como você mencionou, Cuba desenvolveu suas próprias vacinas, mas eles não conseguiram obter tudo o que precisam (como seringas) para realmente realizar a vacinação em massa rápida. É simplesmente grotesco ver os países ricos se gabando de acabar com as restrições da COVIDA-19 (“dia da liberdade!”), Enquanto os países pobres estão sofrendo o pior da pandemia porque os países ricos estão acumulando vacinas e equipamentos. Então, eu diria que a ajuda para combater a pandemia – e não apenas para Cuba, mas para todo o Terceiro Mundo – deve ser uma prioridade absoluta. 

Ana Alakija – Deveria Cuba ter sido incluída no esquema de distribuição de vacinas do governo Biden para quase 100 países de baixa renda ao redor do mundo?

Aviva Chomsky – A proposta de Biden de distribuição de vacinas chega é pequena e chega tarde demais. Os EUA acumulam vacinas há meses, enquanto o vírus está saindo de controle nos países pobres do mundo. Cuba não precisa de vacinas; já desenvolveu suas próprias vacinas. A primeira coisa que Cuba precisa é o fim do bloqueio e da interminável hostilidade e tentativas de minar seu governo por parte dos EUA. Cuba tem capacidade para produzir vacinas, mas as sanções dos EUA bloquearam seu acesso a seringas e outros materiais necessários para a distribuição de vacinas e combate ao vírus. Em vez de fingir “ajudar” Cuba, o governo Biden deveria simplesmente interromper sua campanha de destruição e sabotagem.

Ana Alakija – O Brasil pode ter sua democracia restaurada nas próximas eleições presidenciais, como o Peru recentemente. O Chile também está se encaminhando para um governo independente por meio de eleições. Qual é a diferença entre os movimentos sociais e revolucionários hoje do passado? Você acha que os movimentos literários e intelectuais atuais, incluindo a teoria da dependência, teologia da libertação, realismo mágico e literatura testemunhal, podem influenciar e até mesmo mudar a face da América Latina para um futuro melhor em direção à democracia?

Aviva Chomsky – A teoria da dependência, a teologia da libertação e a literatura testemunhal como movimentos intelectuais estavam claramente vinculados aos movimentos de libertação da América Latina no final do século 20, como os da América Central e do Chile nas décadas de 1970 e 80. Eles não desapareceram, e certamente a teoria da dependência teve uma grande influência nos movimentos socialistas do século 21 na América Latina. Mas eles evoluíram e se juntaram a novos entendimentos da economia global neoliberal que surgiram na década de 1990 e da crise ambiental global. O socialismo do século 21 também é fortemente influenciado por novos movimentos intelectuais, como buen vivir ou sumak kawsay, que vêem os movimentos indígenas e camponeses da América Latina como proponentes de um tipo diferente de anti-capitalismo e anti-imperialismo baseado na soberania alimentar e justiça ambiental e climática.

Ana Alakija – Como raça, gênero, geração e etnia estão desempenhando um papel na história latino-americana atual em relação ao seu passado de colonialismo e escravidão? Estaria a nova geração cubana em Cuba e nos Estados Unidos descomprometida com os ideais da revolução de 1959?

Aviva Chomsky -Então estamos falando sobre várias gerações de cubanos nos Estados Unidos neste momento. Aqueles que vieram na década de 1960, aqueles que vieram nas décadas de 1970, 1980, 1990, 2000, 2010 e agora 2020. E então os filhos e netos dessas gerações anteriores. Com o tempo, os imigrantes cubanos se tornaram mais representativos da população de Cuba em termos raciais e socioeconômicos, em comparação com os primeiros migrantes que eram predominantemente brancos das elites políticas e econômicas. As gerações posteriores também tiveram a experiência de viver dentro da Revolução Cubana e, embora possam ser críticos de muitas coisas que aconteceram em Cuba, eles tiveram uma visão muito mais realista e matizada dos eventos lá. A geração que cresceu durante a crise econômica dos anos 1990 nunca experimentou os dias inebriantes das transformações revolucionárias dos anos 1960, nem a prosperidade e estabilidade relativas dos anos 1970; para eles, a revolução significava simplesmente escassez econômica. Na década de 2000, os migrantes experimentaram a crise / escassez e a crescente desigualdade, à medida que o turismo, o investimento estrangeiro e as remessas começaram a criar uma nova classe privilegiada. Raça e classe realmente se sobrepõem em Cuba devido à sua história de colonialismo e escravidão. Em 1959, os cubanos negros eram desproporcionalmente pobres e marginalizados e tendiam a se beneficiar muito das políticas de de-segregação e redistribuição da revolução. As desigualdades raciais pré-revolucionárias reapareceram obstinadamente durante as reformas dos anos 1990. Os cubanos negros eram menos propensos a ter parentes em Miami que estivessem lá por tempo suficiente para se tornarem economicamente bem-sucedidos e enviar remessas, e eram menos capazes de obter acesso benéfico à nova economia de turismo / investimento estrangeiro e mais propensos a serem explorados por ela. A crise econômica também reverteu muitos dos ganhos que as mulheres haviam obtido durante as primeiras décadas, quando a revolução fez mudanças significativas em favor da igualdade de gênero.

Ana Alakija – Além de vários livros publicados, você presenteou os leitores latino-americanos com The Cuba Reader  (“Cubanólogos”) (Duke University Press, 2015) tendo Barry Carr e Pamela Maria Smorkaloff, associados ao movimento do realismo mágico do século 20, também como editores. Quando os brasileiros terão acesso a essa literatura de mais de setecentas páginas voltada para aqueles que desejam explorar a história, a cultura e a política da na pequena ilha do Caribe cuja história de bravura e solidariedade seduziu a mente da geração brasileira dos anos 60-70?

Aviva Chomsky – Não há planos para traduzir The Cuba Reader para a língua portuguesa. Eu adoraria isso!

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