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“Mãe, se você matar alguém, fica famosa”

Publicado em: 25/05/2011

O que refletir sobre a seguinte situação:

No último fim de semana, acompanhada de uma prima e sua filha, de seis anos, eu estava indo para um almoço de família, quando a menina indagou:

– Mãe, quando é que você vai ser famosa?
A mãe caiu em gargalhada:
– Ué, num sei, filha…
– Acho que você devia virar jornalista! Aparecer na televisão! – disse a menina empolgada.
– Não filha, jornalista é a tia Rê. Mamãe é estilista… Mas, calma, eu ainda vou ser famosa – brincou.
A menina inconformada emendou:
– Ah, mãe, mas eu quero que você seja famosa logo… Acho que você devia matar alguém – disse a menina, instaurando um silêncio constrangedor.
– Como assim, filha?! – disse a mãe.
– É, mãe! Se você matar alguém, você vai sair na televisão…
– Não, filha, a gente não pode ser famosa fazendo coisa ruim. Não é certo. Aí, mamãe vai presa. Já pensou? Não é bom ser famosa assim.
– Ah mãe, se você for presa, eu mato alguém também para ir presa junto… Eu não vou deixar uma mulher linda dessa! – disse a menina abraçando a mãe.
– Filha, chega! Vamos mudar o rumo desta prosa…
– Mas é, mãe, se você matar alguém, você fica famosa! E eu quero que você fique famosa logo! – disse imperativa.
– Chega, Júlia! Vamos falar de outra coisa! – desconversou a mãe.

“Se você matar alguém, você fica famosa”. É isso que estamos fazendo com nossas crianças. Jornalistas, editores, donos dos meios de comunicação, se por um lado contribuem, por outro, estão enlouquecendo a sociedade. Ao dar audiências extremadas a casos de violência e outros fatos de degradação humana, estamos afirmando que quem comete crimes, especialmente hediondos, tem direito a minutos (horas, dias ou semanas) de fama.

Na semana passada, dei uma palestra para estudantes de jornalismo da Unip em Brasília sobre o tema A contribuição da imprensa para um mundo mais sustentável. Um dos debates se deu justamente sobre o papel da imprensa na cobertura de casos de violência.

A cobertura da imprensa do massacre da escola de Realengo, no Rio de Janeiro, e do caso do assassinato da menina Isabella Nardoni tem contribuído para a construção de um mundo mais sustentável? Essa foi a pergunta-chave da conversa.

Se pensarmos em sustentabilidade apenas pelo aspecto ambiental, a pergunta acima parece não fazer muito sentido. Mas se analisarmos a sustentabilidade por um viés mais abrangente – considerando aspectos sociais, econômicos, psíquicos e outros -, percebe-se que a pergunta deveria ser feita todos os dias pelos profissionais da imprensa.

Em vários momentos de sua cobertura, a imprensa não tem contribuído para a construção de um mundo mais sustentável. Entramos num ciclo de corrida maluca, no qual quem ganha é quem perde mais a noção, ou quem degrada mais a figura humana. Mostrar o lado podre da sociedade tem sido o troféu de muitos profissionais da mídia. E esse troféu, por incrível que pareça, tem sido buscado com suor e muita dedicação. São horas na frente ao computador, às câmeras, nos gravadores, em reuniões de pauta, para se chegar ao produto final que é levado ao leitor, ouvinte ou espectador. Nada como uma exclusiva da parede de sangue onde os miolos de Wellington foram estourados, não?

E esse cenário de des-contribuição da imprensa não se restringe a casos de violência. Ele se repete também na cobertura política. Só existem políticos corruptos. Certo? Nenhum deputado ou senador presta. Acertei? Política, no Brasil, é uma merda, então nem adianta discutir, não é mesmo? Essa é a mentalidade que predomina na população brasileira, como se não houvessem políticos dispostos a buscar uma sociedade melhor. O pessimismo é geral e conveniente, pois isenta o sujeito da responsabilidade da cidadania. Então, a imprensa justifica sua busca por audiência pela baixaria política.

Estamos vivendo um período de desconexão geral da sociedade. E essa desconexão está refletida e retroalimentada nos jornais, revistas, sites e programas de TV e rádio. Precisamos frear essa corrida maluca cuja única lógica é reproduzir uma insustentabilidade geral sem parar. Um mundo mais sustentável não é apenas um mundo com preservação ambiental. Significa também um mundo com pessoas mentalmente saudáveis e, cada vez mais, conscientes da interrelação das coisas e dos efeitos de causa e consequência das ações humanas.

Júlia é uma menina linda, muito inteligente e muito amada. O mais provável é que sua observação  tenha decorrido de uma cadeia lógica de pensamentos vinda da cabecinha de uma criança bastante observadora e crítica. Uma criança que tem como um dos jogos preferidos o xadrez e que adora ver TV. Então, não seria o caso de Júlia estar realmente querendo que a mãe cometesse um crime.

Mas, diferente de Júlia, que tem uma família estruturada que a ama, há muitas crianças como Wellington e essas crianças estão crescendo cercadas pelo ibope e fama dos assassinos, estupradores, pedófilos, corrutos, sacanas e dos sem-conteúdo. Alimentando isso, diariamente, nós, profissionais da imprensa, estamos contribuindo para a construção de um mundo em que viver nele passa a ser insustentável.

Não se trata de achar que o certo é relatar na mídia apenas notícias boas, sob a ótica de um mundo ao estilo Poliana. Mas se trata de parar com esse egoísmo burro de querer audiência em troca da desgraça alheia. Se você, jornalista, editor e dono do poder, acha que não está sendo atingido por essa confusão que você mesmo causa, então repense o seu papel.

Blindemos os nossos carros, subamos as nossas cercas elétricas, andemos mais atentos, apressados e tensos pelas ruas. Cuidado com a violência. Afinal, o mundo lá fora está tão perigoso, e dos nossos políticos não podemos esperar nada, pois no Congresso só tem picareta. Ainda bem que existe a imprensa para nos alertar disso. Que benção…

 

Fonte: http://congressoemfoco.uol.com.br/noticia.asp?cod_canal=14&cod_publicacao=37156

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